quinta-feira, 12 de junho de 2014

Poesia traduzida



por Amador Ribeiro Neto

Décio Pignatari, além de destacar-se como um dos inventores da poesia concreta, revelou-se um apurado tradutor. E renomado ensaísta, prosador e dramaturgo.

Décio era um irreverente por natureza. Irreverência que resultava de sua aguda inteligência e da tolerância zero com a ignorância do público e dos artistas. Não aceitava a boçalidade que graça (melhor seria dizer: desgraça) na cena artística brasileira. Vivia aos murros com a crítica também. Não dava o braço a torcer por nada, quando o assunto era obra artística.

Só acreditava na arte que fosse inovação. Que desestabiliza o receptor. Que volta-se para o criador como um bumerangue. Por isso mesmo ele chegou a criar o termo “produssumo” para indicar que todos produzimos e consumimos em arte.

O volume 31 poetas 214 poemas (Campinas, Editora da Unicamp), subintitulado “Do Rigveda e Safo a Apollinaire”, é uma antologia pessoal de poemas da preferência dele, traduzidos e comentados com grande rigor.

O livro, sem ser esta sua intenção, revela a amplitude dos interesses e conhecimentos poéticos de Décio Pignatari.  Aos que insistem em rotulá-lo de poeta concreto,  ele  nem responde. Rebate com trabalhos em prosa, poesia e teatro que nada têm de poesia. Embora poéticos. Para ele, bem como para Augusto de Campos e Haroldo de Campos, a poesia concreta deixou de existir nos anos 60. Ponto pacífico.

Voltando ao livro: os Hinos de Rigveda datam do século XVI a. C. Já Safo, Alceu, Íbico, Praxila, Catulo, Propércio, e Horácio escrevem  entre os séculos VII a. C e 8 a.C.

Depois do início da era cristã, Juvenal, Marcial, Issa, Burns, Byron, Leopardi, Heine, Browning, Rimbaud e Apollinaire. Sem esquecer-se dos poetas da Dinastia Tang: Li Po, Tu Fu, Kin Tchang-Siu, Liu Yu-Si, Po Chu-I. E, nem tampouco, dos poetas provençais menos conhecidos: Vidal e Vogelweide.

São 3.500 anos de poesia. Num admirável trabalho. Feito a partir de poemas inéditos traduzidos pelo próprio tradutor-organizador. Evidentemente que os critérios são aleatórios e subjetivos. E quem se atreveria a fazer uma antologia com esta envergadura histórica sem estar preso a estes dois fatores?

Difícil destacar poeta(s) e poema(s) neste volume. Arrisco alguma coisa. Vejamos um fragmento de um poema (que poderia ser escrito pelos melhores poetas contemporâneos) da indiana Madeviaca, do século XI a.C.: “você cavalga montanhas de safira / calçando sandálias de pedra lunar / soprando longas trombetas / quando vou apertá-lo / nos potes dos meus peitos? / senhor branco-jasmim / quando vou juntar-me a você / sem a vergonha do corpo / sem o pudor do coração?”.

E para chegarmos ao século XX vejamos um fragmento do poema “Versos a Lou”, de Apollinaire, que parece dialogar com Madeviaca: “Vamos ler no mesmo leito. / No livro do seu próprio corpo / - Livro de leitura ao leito - / Leremos o encantador poema / Das graças do seu lindo corpo”. A linguagem das traduções de Décio Pignatari busca no âmago da cultura de cada poeta a dimensão que “diz melhor” ao leitor contemporâneo.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 06 de junho de 2014, p. 7.

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