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Ilustração: Ricardo Campos |
CINCO CANTIGAS DO SOFRER
primeira: tristeza
essa tristeza que invade minhas canções
me faz poeta antigo em 78 rotações
sem muita profundidade um homem torpe.
no sereno vagueio pro próximo porre
tropeço num cão vagabundo que corre
sem muita profundidade um homem torpe.
procuro por outro bar que ainda me atenda
não imagino qualquer ideia que penda
e fuja dos descompassos de meus desejos.
pode ser daqueles sem cadeiras ou mesas
preciso da dose que solte a palavra presa
e fuja dos descompassos de meus desejos.
mas esta noite é uma daquelas de tristeza
em que sofro passo a passo rumo à incerteza
no pensamento a volúpia de teus beijos.
nada de última dose rimas palavras bares
um sentimento que vá volte e crave
no pensamento a volúpia de teus beijos.
quem sabe não serei eu aquele cão de outrora?
segunda: dor de cotovelo ou uma pedra no caminho do poeta ricardo campos
sofro sofro sofro sofro e sofro
um desespero nas veias circula
você foi embora e nem ao menos calcula
o que é um poeta sem seu bem-querer.
bebo bebo bebo bebo e bebo
sofrer faz parte de meu setlist
espero que a ingratidão mútua que existe
me mostre o caminho ao amanhecer.
dor dor dor dor e dor
cada pausa daquela música me atravessa
arrebenta meus pulsos e me arremessa
a desejos de morte que não quero entender.
só só só só e só
deixe-me aqui em pebinha do bar
olhe em meus olhos sequer sei andar
poesia é isso tudo o que há entre mim e você.
terceira: cantiga fajuta sobre a traição
traído cabisbaixo e contente
caminhava lentamente pro bar
com a desculpa óbvia dos valentes
sofrer é uma das melhores profissões que há.
o primeiro gole parecia amargo
mas apenas precedeu o segundo
'coloque aí meu senhor o zezé de camargo
que hoje eu estou muito profundo'.
exagerado no sofrimento como sempre
cantava alto num inglês quase barroco
não havia limites e seguia em frente
já ao som do nelson e seus tons roucos
lá pras tantas com a cabeça sobre o balcão
não suportava mais sequer quimera
relembrava teus sorrisos de profissão
deleitando-se nos braços de odiosas feras
ao caminhar sobre pernas que não respondiam
seguia firme e forte com lágrimas enxutas
mas ao abrir o portão lembrei-me o que todos sabiam
àquelas horas tu já te ocupavas de tua labuta.
quarta: flores de papel não tem aroma
minha linda flor.
minha bela flor maligna
enxota este teu menestrel
receba somente este papel
com cantigas de vãs andanças.
não me culpe por atrevidas esperanças
e estas canções talvez indignas.
minha linda flor.
enxota este teu menestrel
com cantigas de vãs andanças
receba somente este papel
não me culpe por atrevidas esperanças
e estas canções talvez indignas.
minha bela flor maligna.
minha linda flor.
não me culpe por atrevidas esperanças
e estas canções talvez indignas
minha bela flor maligna
com cantigas de vãs andanças
receba somente este papel.
enxota este teu menestrel.
minha linda flor.
com cantigas de vãs andanças
não me culpe por atrevidas esperanças
receba somente este papel
minha bela flor maligna.
enxota este teu menestrel
e estas canções talvez indignas.
quinta: sofrimento
quando tu partiste naquele crepúsculo depois de
estar coberta com os lençóis branquinhos recém-vindouros da lavanderia da
esquina em que costumo a seco encontrar aquela dona de fartos peitos que sempre
chama minha atenção não pelos peitos ou pelo sorriso ou pela mentira dos
desejos saio para duas horas de espera de bar-em-bar inconsequente a encontrar
um casal de ex-amigos para quais não pronunciava sequer boa tarde bom dia bom
qualquer ou patéticas reticências de um bem-querer que jamais existiu apenas
uma cordialidade social de jovens que ao distanciar-se da família num lugar
longínquo observa e acompanha-se de quem desnecessariamente é necessário um
absurdo desses só depois de amanhã sendo que agora resolvo atônito tomar uma
cerveja gelada num bar em que uma moça de sorriso micho e mamilos pontiagudos
me observava com demasiado desejo naqueles olhos duas esmeraldas opacos e
translúcidos os olhares talvez fossem somente devaneios taciturnos de
pensamentos infames dissidentes de quaisquer ingenuidades a cerveja não estava
tão gelada e os pontiagudos desejos puseram-me cabisbaixo intrinsecamente
capturado nas memórias de um pai morto de uma vida vã de estar naquela tarde
que deixava de ser duramente clara e espalhava todos os seus tons alaranjados
em reflexos que atravessavam as vitrines de lojas barrocas com manequins sem
rosto minha vida valeria o rosto que sei que tenho ou seria apenas o reflexo no
espelho que me conduzia durante esses últimos trinta e dois anos enviesados
meio poeta meio louco meio nunca completamente nada sempre vaziamente tudo
lembro do halley que passou há anos por aquele céu que com o entardecer ficava
menos azul piscina e mais azul marítimo
a cerveja. o dinheiro. os mamilos pontiagudos da moça alquebrada.
a esquina. a lavanderia. os peitos da mulher sorridente.
voltar para casa foi a pior das decisões.
os lençóis já não precisavam estar tão brancos.
tu foste embora.
passei aquela noite lendo revistas da marvel
e claro, sofrendo.
____.
Poemas: Ythallo Rodrigues
Ilustração: Ricardo Campos
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