sexta-feira, 17 de agosto de 2012

Delírio de Coletivo

por Hudson Jorge | ilustração Reginaldo Farias



Godofredo e Verônica conversam em meio ao caótico rebuliço daquele coletivo lotado. Pareciam não dar importância àquele barulho infernal que os envolvia. O assunto era mais um daqueles sobre a questão existencial de jovens tão atribulados e imbuídos de missões que, por vezes, parecem ser esmagadoramente maiores do que podem suportar. Um se importava com outro e era visível isso entre eles. E esse “se importar” há semanas parecia vir carregado de algo ternamente diferente, agradável e bonito.

Depois de longa conversa, Verônica olha profundamente nos olhos de Godofredo, enquanto segurava, com uma das mãos, aquelas barras de apoio para os passageiros que viajam em pé e, com a outra, ajeitava delicadamente seus cabelos castanhos e lisos, dizendo, de forma desafiadora e meiga: “ah!, eu quero é ser feliz e beijar na boca!”.

Godofredo sente um frio na barriga e o acelerar de seu coração ainda virgem de amor e, trêmulo, observa Verônica dar um passo tímido à frente. Como um galã daqueles filmes antigos, Godofredo, sem se importar com o caos no coletivo, envolve a cintura de Verônica com um dos braços e com o outro ampara calculadamente a sua nuca. De forma heroica, Godofredo encosta seus lábios nos de Verônica. De repente é como se caminhassem descalços sobre um piso de algodão, vestidos de roupas brancas, leves e bem confortáveis. Aquele beijo trazia a sensação de uma cama bem quentinha numa manhã fria de inverno. Durante aquele momento, Godofredo parecia retornar ao útero materno e sentir que a força do Universo estava com ele.

Naquele instante finitamente infinito, Godofredo se sentiu feliz como nunca havia sido.

De repente, um barulho irritante. Trôpego e ainda feliz, Godofredo abre, lentamente, seus olhos pesados. Ao seu lado, Adalgiza, sua mulher, com o bigode ainda por fazer e com a camisola furada por cima da calcinha bege, dizia em alto volume: “acorda, Godofredo! É hora de ir trabalhar!”

____
Inspirado no poema "Abonança", de Ythallo Rodrigues.

Nenhum comentário:

Postar um comentário