por Harlon Homem de Lacerda
Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas – seis da manhã à meia-noite – nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais. (2009, p. 14)
A “estória de um burrinho” é igualada à ação trágica ou ao alto estilo da tragédia clássica, como coloca Aristóteles na Poética (ou como ela foi interpretada pela tradição ocidental): a história (com H) de um grande homem no “resumo de um só dia”. A estória (com E) do burrinho, a grandeza de sua ação heroica é marcada pela unidade de tempo (seis da manhã à meia-noite) e de espaço. O uso de estória (no lugar de história) marca o caráter ficcional desta narrativa em oposição à “veracidade” que requer a história, além de uma ironia construída nesta aproximação opositiva.
A forma arquitetônica, a relação entre o tom emotivo-volitivo (axiológico) e o cronotopo, é construída no início do texto a partir desta oposição de “importância” dada a um burrinho, assemelhado a “um homem grande” (que não precisa ser, um grande homem), que já está velho, mas que terá um “crescimento” na sua existência a partir do que nos será apresentado no desenrolar da história ou estória. O que segue é a construção da situação na qual o burrinho terá seu crescimento, a descrição do espaço, das outras personagens, da maneira como elas tratam o herói (sempre com desdém – ninguém quer montar o burrinho e ainda o deixam para o último vaqueiro, no retorno à fazenda) etc. O trabalho linguístico de aliterações e assonâncias na descrição da boiada, dos currais, do trajeto dos vaqueiros e outras fazem com que a importância do burrinho seja “esquecida” ou sublimada, como recurso necessário à surpresa que será trazida no final da narrativa.
Quando a tropa está regressando à fazenda deve passar por um rio que, por conta da chuva, teve seu volume aumentado assustadoramente. Alguns vaqueiros desistem de atravessar, mas outros confiam sua travessia unicamente em uma “pessoa”: no burrinho Sete-de-Ouros, que tem um instinto natural (marcado pela posição das sua orelhas) para realizar tal travessia a contento, como chama atenção um dos vaqueiros: “Juízo, gente! Olha o burro...” (p. 54):
Sete-de-Ouros parara o chouto; e imediatamente tomou conhecimento da aragem, do bom e do mau: primeiro, orelhas firmes, para cima – perigo difuso, incerto; depois, as orelhas se mexiam, para os lados –, dificuldade já sabida, bem posta no seu lugar. E ficou. A treva era espessa, e um burro não é gato e nem cobra, pra querer enxergar no escuro. Ele não espiava, não escutava. Esperava qualquer coisa.
Depois de reconhecido o perigo, faltava ao burro o gatilho para iniciar o ato heroico: realizar a travessia, guiar a tropa. Este gatilho, se pensarmos no herói da tradição clássica, é a vontade objetiva de realizar um feito. Vontade que o burrinho não sabe o que é, mas que “quando essa chegou, Sete-de-Ouros avançou, resoluto. Chafurdou, espadanou água, e foi”. Os cavalos o seguiram, os vaqueiros junto. O que segue é a descrição da travessia. A morte sendo carregada pelas águas, personificada nos troncos e bichos de pêlo, de pena e de escama, e carregando os cavalos e vaqueiros, oito – achados mortos nos dias seguintes. O burrinho, seu montador bêbado agarrado à crina e o sobrevivente Francolim na cauda, chegou à outra margem e seguiu para a fazenda. O reconhecimento vem junto com a peripécia: o burrinho, escarnecido até então, foi reconhecido como o único capaz de guiar a tropa e assim o fez.
A linguagem característica de Guimarães Rosa (um material) constrói uma forma composicional, o conto, ligado à estrutura de outras formas composicionais da tradição literária ocidental (como a tragédia clássica) com uma forma arquitetônica que se opõe às formas arquitetônicas dessa mesma tradição, mas que se liga a ela no instante em que apresenta um herói com características fundamentais para a realização da peripécia e do reconhecimento. Este herói, um burrinho pedrês relegado normalmente à condição de submissão no sertão. Este herói, um burrinho pedrês que tem sua fortuna revertida: de um animal já velho para o salvador do sertanejo.
A condição de co-criador denota a narrativa do burrinho pedrês a partir de sua relação com a tradição e da maneira como é ressignificada a ideia de herói. Além da construção de um universo sertanejo ficcional reconfigurado a partir do sertão de Minas Gerais que determina a narrativa rosiana em quase toda a sua produção.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.
Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
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