por Harlon Homem de Lacerda
João Condé foi um escritor e jornalista pernambucano que trabalhava, no período da publicação de Sagarana, na Livraria José Olympio. Aparentemente a pedido dele, Guimarães Rosa escreveu uma explicação sobre seu primeiro livro de contos. É a partir dessa explicação que entraremos em Sagarana e na “concepção de mundo” rosiana. Num texto rápido e bem humorado, Guimarães esclarece a João Condé como teria sido o planejamento desse livro, sua execução e uma ideia de cada conto e de como e por que eles entraram no livro. Não sei se é apenas conosco, mas esse texto, cada vez que o lemos, faz com que renovemos a esperança no mundo, na literatura, na vida, na educação, na escrita, nas pessoas. O título, transcrito do livro da filha de Guimarães (Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai), Vilma, é “Carta de João Guimarães Rosa a João Condé, revelando segredos de Sagarana”. A nossa vontade é de transcrever o texto, linha por linha, e comentar qualquer coisa...
Prezado João Condé
Exigiu você que eu escrevesse, manu propria, nos espaços brancos deste seu exemplar de Sagarana, uma explicação, uma confissão, uma conversa, a mais extensa, possível — o imposto João Condé para escritores, enfim. Ora, nem o assunto é simples, nem sei eu bem o que contar. Mirrado pé de couve, seja, o livro fica sendo, no chão do seu autor, uma árvore velha, capaz de transviá-lo e de o fazer andar errado, se tenta alcançar-lhe os fios extremos, no labirinto das raízes. Graças a Deus, tudo é mistério.
De cara, logo no início, nos vem a noção de que o escritor só é dono de sua obra enquanto está escrevendo (e isso ainda tem um ou outro porém). Depois de escrito, a posse do escritor está apenas no nome da capa, num prefácio e olhe lá! Guimarães sabe disso. Toma cuidado para não “transviar” o livro, não o “fazer andar errado”. Ele não “sabe bem o que contar” por conta da incapacidade de alguém falar sobre um processo existente apenas enquanto está sendo feito. Depois de pronto, o livro é do leitor. Mesmo o autor torna-se também um leitor que pode lembrar ou não o motivo de um ou outro tema, palavra, personagem etc. A tentativa de explicar o livro, como muito escritores fazem na televisão hoje em dia, faz com que o texto seja “mirrado pé de couve no chão do seu autor”, “árvore velha” sem frutos, sem sombra, morta.
Algo, porém, tem de ser dito. Ao autor o que é do autor, mas a João Condé o que é de João Condé.
Assim, pois, em 1937 — um dia, outro dia, outro dia ... – quando chegou a hora de o Sagarana ter de ser escrito, pensei muito. Num barquinho, que viria descendo o rio e passaria ao alcance das minhas mãos, eu ia poder colocar o que quisesse. Principalmente, nele poderia embarcar, inteira, no momento, a minha concepção-do-mundo.
“Ter de ser escrito”. Precisa dizer mais? A necessidade de expressar-se, aquela vontade objetiva que dá no escritor quando ele vai escrever, quando ele precisa escrever. E essa ideia do barquinho! Logo, nós lembramos pelo menos dois contos: “A terceira margem do rio” e “Desenredo” (“todo abismo é navegável a barquinhos de papel”). Esse barquinho de Guimarães, esse rio, que atravessa a obra, a vida, do escritor é importante para pensarmos em tudo referente à obra rosiana. É nesse barquinho descendo o rio que encontramos a “concepção-de-mundo” de Guimarães. Que concepção de mundo? Ele explica mais ou menos mais embaixo...
Tinha de pensar, igualmente, na palavra “arte”, em tudo o que ela para mim representava, como corpo e como alma; como um daqueles variados caminhos que levam do temporal ao eterno, principalmente.
Como é que comenta isso, pelamordeDeus?! Que caminhos são esses, que levam do “temporal ao eterno”? Seria esse temporal o modernismo? A onda regionalista de 30? Sei lá, velho! Pode ser tanta coisa! Tanta coisa de bonita! Esse corpo e essa alma da arte, representativos pra Guimarães estão na própria obra dele? As parábolas, como ele diz mais na frente aqui nessa carta, as personagens, o sertão seria a alma? O corpo seria a linguagem, a forma de cada conto, do romance? Também não sabemos! É por isso que nos sentimos tão renovados quando lemos esse texto. Ele acende a nossa curiosidade no limite! Querer saber o que é arte, o que é que vai do temporal ao eterno. Será se a pesquisa acadêmica é um desses caminhos? Ou é só a arte? Que arte leva do temporal do ao eterno?
Já pressentira que o livro, não podendo ser de poemas, teria de ser de novelas. E — sendo meu — uma série de Histórias adultas da Carochinha, portanto.
E lá vai Guimarães Rosa dando rasteira num monte de crítico pedante por aí, de novo! São Historinhas da Carochinha, feitas pra entreter, pra divagar, pra passar tempo, pra dormir a noite, mas como são adultas, talvez pra não dormir a noite. Ficar pensando. Ficar ruminando, que nem boi, cada ação. As “novelas” de Guimarães não são descritas por ele como reveladoras da verdade humana, ele não as trata com aquela seriedade caduca dos céticos. Ele as trata com carinho, com suavidade, com leveza – como diria uma amiga nossa.
Rezei, de verdade, para que pudesse esquecer-me, por completo, de que algum dia já tivessem existido septos, limitações, tabiques, preconceitos, a respeito de normas, modas, tendências, escolas literárias, doutrinas, conceitos, atualidades e tradições — no tempo e no espaço. Isso, porque: na panela do pobre, tudo é tempero. E, conforme aquele sábio salmão grego de André Maurois: um rio sem margens é o ideal do peixe.
Aqui, sentimos pena por mais uma bordoada na cara dos críticos bestões e ficamos somente com isso: “na panela do pobre, tudo é tempero”. Não esquecemos, entretanto, dessa travessia, desse rio ideal que carimba a testa dos mencionados críticos.
Aí, experimentei o meu estilo, como é que estaria. Me agradou. Decerto que eu amava a língua. Apenas, não a amo como a mãe severa, mas como a bela amante e companheira. O que eu gostaria de poder fazer (não o que fiz, João Condé!) seria aplicar, no caso, a minha interpretação de uns versos de Paul Eluard: “… o peixe avança nágua, como um dedo numa luva...” Um ideal: precisão, micromilimétrica.
E riqueza, oh! riqueza ... Pelo menos, impiedoso, horror ao lugar-comum; que as chapas são pedaços de carne corrompida, são pecados contra o Espírito Santo, são taperas no território do idioma.
Mas, ainda haveria mais, se possível (sonhar é fácil, João Condé, realizar é que são elas...): além dos estados líquidos e sólidos, por que não tentar trabalhar a língua também em estado gasoso?!
Agradou, decerto. A riqueza, o estado gasoso da língua falada no “range rede” do alpendre num fim de tarde, junto com café e bolo de milho; naquela conversa sem rumo nenhum, feita no batente à sombra de uma loja fechada. Esse é o estado gasoso, a riqueza da língua do sertão que Guimarães talvez trate nessa passagem da carta e que tanto encanta quem o lê. Sem dúvida, ele supera o lugar-comum. Sem dúvida, Guimarães alcançou o sentimento que temos diante do abismo: o sublime. E seja mais sublime, talvez, pra quem é do sertão e se enxerga em cada palavra dita: em cada “apre”, “mói no asp’ro”, “difruço” e por aí vai. Aqui, nesse trecho da carta, surge uma paz de espírito em saber que Sagarana existe. Em saber que a obra de Guimarães existe.
Àquela altura, porém, eu tinha de escolher o terreno onde localizar as minhas histórias. Podia ser Barbacena, Belo Horizonte, o Rio, a China, o arquipélago de Neo-Baratária, o espaço astral, ou, mesmo, o pedaço de Minas Gerais que era mais meu. E foi o que preferi. Porque tinha muitas saudades de lá. Porque conhecia um pouco melhor a terra, a gente, bichos, árvores. Porque o povo do interior — sem convenções, “poses” — dá melhores personagens de parábolas: lá se veem bem as reações humanas e a ação do destino: lá se vê bem um rio cair na cachoeira ou contornar a montanha, e as grandes árvores escalarem sob o raio, e a cada talo do capim humano rebrotar com a chuva ou se estorricar com a seca.
O sertão é dentro da gente, é a gente, sem frescura, sem “poses”. Temos mais pra dizer disso não.
Bem, resumindo: ficou resolvido que o livro se passaria no interior de Minas Gerais. E compor-se-ia de 12 novelas. Aqui, caro Condé, findava a fase de premeditação. Restava agir.
Então, passei horas de dias, fechado no quarto, cantando cantigas sertanejas, dialogando com vaqueiros de velha lembrança, “revendo” paisagens da minha terra, e aboiando para um gado imenso. Quando a máquina esteve pronta, parti. Lembro-me de que foi num domingo, de manhã.
O livro foi escrito — quase todo na cama, a lápis, em cadernos de 100 folhas — em sete meses; sete meses de exaltação, de deslumbramento. (Depois, repousou durante sete anos; e, em 1945 foi “retrabalhado”, em cinco meses, cinco meses de reflexão e de lucidez.)
Do temporal ao eterno?
Lá por novembro, contratei com uma datilógrafa a passagem a limpo. E, a 31 de dezembro de 1937, entreguei o original, às 5 e meia da tarde, na Livraria José Olympio. O título escolhido era “Sezão”; mas, para melhor resguardar o anonimato, pespeguei no cartapácio, à última hora, este rótulo simples: “Contos (título provisório, a ser substituído)” por Viator. Porque eu ia ter de começar longas viagens, logo após.
Vamos deixá-los com Rosa (e Condé) por um tempo.
Como já disse, as histórias eram doze.
I) – O burrinho pedrês – Peça não-profana, mas sugerida por um acontecimento real, passado em minha terra, há muitos anos: o afogamento de um grupo de vaqueiros, num córrego cheio.
II) – A volta do marido pródigo – A menos “pensada” das novelas do Sagarana, a única que foi pensada velozmente, na ponta do lápis. Também quase não foi manipulada, em 1945.
III) – Duelo – Aqui, tudo aconteceu ao contrário do que ficou dito para a anterior: a história foi meditada e “vivida”, durante um mês, para ser escrita em uma semana, aproximadamente. Contudo, também quase não sofreu retoques em 1945.
IV) – Sarapalha – Desta, da história desta história, pouco me lembro. No livro, será ela, talvez, a de que menos gosto.
V) – Questões de Família – História fraca, sincera demais, meio autobiográfica, mal realizada. Foi expelida do livro e definitivamente destruída.
VI) – (Uma História de Amor – Um belo tema, que não consegui desenvolver razoavelmente. Teve o mesmo destino da novela anterior).
VII) – Minha Gente – Por causa de uma gripe, talvez, foi escrita molemente, com uma pachorra e um descansado de espírito, que o autor não poderia ter, ao escrever as demais.
VII) – Conversa de bois – Aqui, houve fenômeno interessante, o único caso, neste livro, de mediunismo puro. Eu planejava escrever um conto de carro-de-bois com o carro, os bois, o guia e o carreiro. Penosamente, urdi o enredo, e, um sábado, fui domir, contente, disposto a pior em caderno, no domingo, a história (n. 1). Mas, no domingo caiu-me do ou no crânio, prontinha, espécie de Minerva, outra história (n. 2) – também com carro, bois, carreiro e guia – totalmente diferente da da véspera. Não hesitei: escrevi-a, logo, e me esqueci da outra, da anterior. Em 1945, sofreu grandes retoques, mas nada recebeu da versão pré-histórica, que fora definitivamente sacrificada.
IX) – Bicho mau – deixou de figurar no Sagarana, porque não tem parentesco profundo com as nove histórias deste, com as quais se amadrinhara, apenas, por pertencer à mesma época e à mesma zona. Seu sentido é outro. Ficou guardada para outro livro de novelas, já concebido, e que, daqui a alguns anos, talvez seja escrito.
X) – Corpo Fechado – Talvez seja a minha predileta. Manuel Fulô foi o personagem que mais conviveu “Humanamente” comigo, e cheguei a desconfiar de que ele pudesse ter uma qualquer espécie de existência. Assim, viveu ele para mim mais uma 3 ou 4 histórias, que não aproveitei no papel, porque não tinham nenhum valor de parábolas, não “transcendiam”.
XI) – São Marcos – Demorada para escrever, pois exigia grandes esforços de memória, para a reconstituição de paisagens já muito afundadas. Foi a peça mais trabalhada do livro.
XII) – A hora e a vez de Augusto Matraga – História mais séria, de certo modo síntese e chave de todas as outras, não falarei sobre o seu conteúdo. Quanto à forma, representa pra mim vitória íntima, pois, desde o começo do livro, o seu estilo era o que eu procurava descobrir.
O livro mesmo acabou com 09 contos ou novelas: “O burrinho pedrês”, “A volta do marido pródigo”, “Sarapalha”, “Duelo”, “Minha gente”, “São Marcos”, “Corpo Fechado”, “Conversa de Bois” e “A hora e vez de Augusto Matraga”. Bom lembrar que “Sarapalha” (a que Rosa diz que menos gosta) foi adaptada para o teatro como Vau da Sarapalha – peça aclamada! “Uma História de Amor” talvez seja “A história de Lélio e Lina”, escrita pra Corpo de Baile, anos depois. “Bicho mau” acabou ficando no livro Estas Estórias, organizado como obra póstuma por Paulo Rónai.
Fiquemos, assim, com as palavras de Guimarães, as nossas, ficaremos com elas mais na frente, conto a conto ou novela a novela. Gostaríamos de chamar atenção pra uma coisa, por fim, Guimarães disse que começou a escrever num domingo. Foi num domingo também que aconteceu o caso de “mediunismo puro” da “Conversa de bois”. “O burrinho pedrês” é uma peça “não-profana”. Haroldo de Campos falou uma vez que, num encontro com Rosa, o mineiro falou de um diabo que o tomava quando escrevia suas estórias. Essa coisa de criar num domingo, quando Deus descansou, parece brincadeira de quem joga tanto com Deus e o diabo, num é não?
Por ora, Condé, aqui está o que eu pude relembrar, acerca do Sagarana. Se Você quiser, eu poderei contar, mais tarde —, num exemplar da 2.ª edição — algumas passagens históricas, ocorridas entre o dia 31 de dezembro de 1937 e a data em que o livro foi entregue à Editora Universal. Serve?
Com o cordial abraço doGUIMARÃES ROSA.
...A nossa vontade era de comentar linha por linha a carta. Fizemos isso. Ficamos, mais uma vez, com aquela fé renovada de que falamos no início. Em nosso próximo encontro, falaremos de “O burrinho pedrês”. Aí sim, entraremos de vez em Sagarana. Serve?
Com o cordial abraço do
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.
Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
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- Regionalista?!
- Vixe Maria!
- Tempo e Espaço
- A cuspida de Dona Anita
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