quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Poesia da língua dos escorpiões



por Amador Ribeiro Neto

Alberto Lins Caldas (Gravatá-PE, 1957) é poeta, prosador e ensaísta. Cursou História e Arqueologia na UFPE. Publicou Babel (contos, 2001), Gorgonas (contos, 2008), Senhor Krauze (romance, 2009), Minos (poesia, 2011) e De corpo presente (poesia, Rio de Janeiro: Ibis Libris, 2013).

Para ele, entre outras coisas, “a chamada ‘Literatura brasileira’ é a da Língua domesticada, Língua doméstica, Língua domesticadora”. No entanto, nele a língua rebela-se desde a ausência de acentos, a liberdade no uso da pontuação, até a organização inesperada de uma gramática das ideias e da sintaxe. O que sobressai em sua poesia é a força de uma linguagem encorpada, contundente, magnética. Que rouba o oxigênio do leitor. Expele em suas ventas o veneno dos escorpiões.

Lemos De corpo presente com intenso gozo poético. Gozo que, como se sabe, é domínio de raríssimos poetas. Não há em seu livro um único poema que possa, ainda que de longe, decepcionar o leitor. Mesmo aquele leitor de olhar de lince e espírito aguçado, faca afiada e bala na agulha. Antes: cada poema é um elo numa cadeia de inventividade e desvelamentos. Devora-se sua poesia num clima de lance de dados: incitado pela surpresa do que virá. E certo de que só há dadas excelências pela frente.

Em sua poesia o ritmo é irmão gêmeo das imagens e ideias desconcertantes. Aquilo que a torna arrebatadora é ser avessa à pasmaceira, ao lugar-comum, ao esperado. E farta de revelações. O leitor de Alberto Lins Caldas deve estar preparado para desinstalar-se. Para sentir-se à beira do abismo. Ou mesmo dentro dele. Continuadamente.

Dante é um referencial que se mescla a outras agruras: às de Baudelaire, por exemplo. Tudo consumado em versos que iniciam e encerram-se com o marcador • já utilizado em Minos. A ácida ironia instala o horror no corpo do dia-a-dia. Elege o grotesco como marca indelével. Berra contra a institucionalização da vida bovina de cada leitor.

Em Alberto Lins Caldas a poesia é palavra desordenada. E ordem às avessas. A vida consolida-se em uivos de furor e linguagem. O objeto é sua representação sem signos intermediários. Como se na arqueologia da linguagem não houvesse nada a não ser poiésis em estado bruto.

O poema “ancoras na terra e na terra” diz: “ • ancoras na terra e na terra • / • ancoras como girassois na terra •  // • giram como o sol q não gira • / • e de tanto girar se ancora no ar • // • nessas ancoras de ferro devorado • / • o vento a chuva o deserto o mar • // • esse que não existe senão em ondas • / • essas ondas as ondas o mar o mar • // • fagulhas de mar sobre as ancoras • / • ancoras do mar ao redor das ruinas • // • ao redor das ancoras bosta de boi • / • passaros mortos cidades desejos • // • ao largo castanhas devoradas nozes • / • todas devoradas ao largo e alem • // • ao longe o deserto olha e deseja • / • o deserto se abre o deserto  se alastra • // • o deserto diz queremos a palavra • / • deserto se alastra em ondas em ondas • // • depois so havera deserto e desertos • / • e ninguem sabera o que nao é deserto • // • nem as ancoras em ondas em ondas • / • sobre a terra a terra e os girassois • // • em ondas o deserto ofusca o deserto • / • e deserto e deserto já não ha não ha • ”. Eis um raro poeta. Quem tem medo de Alberto Lins Caldas?
____

Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 30 de janeiro de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário