terça-feira, 17 de fevereiro de 2015
Perspectivas do alheio
por Harlon Homem de Lacerda
O texto narrativo é um bem humano que se caracteriza pela construção de perspectivas do alheio. Mesmo textos com narrador em primeira pessoa não se deixam cristalizar por uma intimidade total com o leitor. Estamos sempre diante do outro. A incompletude que forma o ser humano deixa que o narrar, o mostrar-se e o observar, materialize-se sempre como uma novidade que permanece novidade (lembrando Ezra Pound). É quando não cansamos de ler as mesmas formas (mesmas apenas nos nomes – romance ou conto) que asseguramos a certeza de que a literatura não vai acabar nem o autor morreu. Assim, deixamos aqui um recado para quem quer se tornar um leitor, um conselho pra quem já o é e um aviso pra quem pensar em deixar de ser: é na certeza da existência do outro como parte do eu que a arte permanece e transforma.
Tenho pensado constantemente sobre a natureza da narrativa. Aquilo que encanta e esvazia. Nas grandes epopeias homéricas o passado tornado presente, como bem desenvolve Erich Auerbach, é o achado da eternidade. A maneira como o narrador épico constrói a ação, caracteriza os sentimentos e afecções das personagens, intercala desejos, antes movimenta do que descreve espadas e lanças no ardor das batalhas é a receita do encantamento. Os herdeiros dessa tradição não deixam a desejar. Quem são os herdeiros? Todos aqueles que contam uma história, à beira do fogo, diante de uma plateia, na frente de um computador, à mão com tinta e papel. Não há os 10 melhores. Não há lista. Não há cânone. Há humanidade, vontade de ser o outro do eu criando outros para si.
Neste espaço já falei de três histórias: O irmão alemão de Chico Buarque, Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister de Goethe e "A hora e vez de Augusto Matraga" de Guimarães Rosa. Nada une estes três mundos além da forma narrativa. As linguagens são diversas, as personagens são distintas, as vontades são diferentes. Sabemos, entretanto, que lemos romances e contos. Sabemos que queremos conhecer aquilo que nos é mostrado página a página, capítulo a capítulo. Sabemos que queremos mais, entrar a fundo nas histórias, andar lado a lado com eles. Sonhar, fantasiar, completar-se neles. Formar-se. Buscar-se.
Tentei trazer até agora motivos para que outras pessoas sigam nessa busca junto comigo. Aqui n’O Berro, e agradeço sempre, pude contar com a possibilidade de mostrar a minha perspectiva, o meu tom, diante de textos narrativos novos ou célebres. A experiência acadêmica parece às vezes engessar algo que merece liberdade, mas esse não é o objetivo. Quero apenas poder dizer as minhas sensações para cada momento que me torno outro sendo eu mesmo. Quero também que outros digam pra mim o que sentiram, o que sentem sendo os outros que eu fui nestas narrativas que apresento quinzenalmente aqui nesta coluna que agora tem nome: Perspectivas do alheio.
Celebremos então o carnaval, por fim, esta imperdível chance de ser outro no meio do mundo, de ser outro fora do livro, de narrar encontros e desencontros mesmo com a impossibilidade de narrar estando fora de si, dando a mínima para qualquer teoria e vivendo a prática de ser inteiramente feliz por quatro dias. Agradeço a tod@s que leem esta coluna e seguimos na certeza de uma nova história, de um novo mundo, de uma nova narrativa, quinzenalmente, aqui n’O Berro e no sertão além.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.
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