domingo, 6 de julho de 2014

Assistir a um lançamento de Woody Allen no cinema é o mesmo que poder assistir ao vivo o futebol do Garrincha



por Elvis Pinheiro

Woody Allen já havia dirigido 26 longas-metragens, desde o primeiro em 1966 (O que há, tigresa?), quando em 1997 eu assisti pela primeira vez a um filme dele no cinema, e foi exatamente Desconstruindo Harry.

Eu era estudante do curso de Publicidade na Federal de Pernambuco e fazia muito pouco tempo que estava morando em Recife. Já admirava o diretor há bastante tempo, mas pelo que vi dele através da TV e das locadoras de vídeo. Desconstruindo Harry seria importantíssimo para mim, porque eu estava vendo um filme do Woody Allen numa sala de cinema e mais do que isso: um lançamento do velho mestre. A questão numa situação dessas é que diferente dos outros filmes que eu recebi com críticas e julgamentos já formulados pelos outros, aquela era a minha experiência particular, sem intermediários, sem distanciamento. Foi quando a minha vida se tornou contemporânea à de Woody Allen.

Já conhecia as obras clássicas: Tudo que você sempre quis saber sobre sexo, mas tinha medo de perguntar (1972), Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (1977),  Manhattan (1979), A Rosa Púrpura do Cairo (1985), Hannah e Suas Irmãs (1986),  A Era do Rádio (1987), Setembro (1987), Um Misterioso Assassinato em Manhattan (1993) e  Todos Dizem Eu Te Amo (1996). Estes nove filmes já me asseguravam da importância e da qualidade das suas produções.

Quando pensávamos sobre a pauta desta edição da Sétima, o que foi levado em conta ao escolher o diretor em destaque foi exatamente o fato de ainda hoje ser possível admirar um novo lançamento do diretor nova-iorquino numa sala de cinema. Então, não falarei sobre os melhores filmes, ou sobre os filmes da década de 70, ou os da década de 80 ou 90 ou da primeira década do século XXI. Também não falarei sobre a divisão de sua obra em dramas e comédias, ou sobre os filmes nos quais ele homenageia outros grandes diretores. O meu recorte para esta matéria foram os filmes que vi numa sala de cinema.

Vez por outra, durante a minha fala de abertura como mediador de cinema nas salas alternativas do Cariri, gosto de explicar a diferença entre «ver um filme» e «ir ao cinema». Até 1995 eu, majoritariamente, vi filmes. E meu amor pela sétima arte se consolidou desta forma: vendo filmes e os vendo pela TV, a grande maioria, inclusive, dublados. Mas algumas poucas sessões de cinema nesse período me alertaram para um outro sabor, para uma forma mais forte e saborosa de vivenciar a experiência estética de ver um filme.

Cinema é Evento. Nós somos avisados que em tais dias haverá exibição de determinado filme, em determinados horários e nós nos planejamos para a sessão, escolhendo a roupa, a companhia ou não, pensando em como iremos e voltaremos do lugar para onde irão outras pessoas conhecidas e desconhecidas. É um evento público. Pode ou não ser gratuito, pode ou não vir acompanhado de pipoca e refrigerante, pode ou não ser um lançamento ou a reexibição de um clássico. Será Cinema todas as vezes que se tornar um Evento com dia, hora e local determinados. Essa cerimônia, em espaço fechado, escuro, devidamente climatizado, é que transforma a experiência de simplesmente «ver um filme» em «ir ao cinema».

Quando em 1997 eu vi no jornal que Desconstruindo Harry, o mais recente filme de Woody Allen, estaria sendo exibido em Recife, eu fiquei muito emocionado. Como se para um fã de futebol, que lê sobre os grandes jogadores da história desse esporte, pudesse ir ver uma partida do Garrincha num estádio lotado. Comprei meu ingresso, escolhi a poltrona que ficasse na melhor posição e vi dos créditos iniciais aos derradeiros algo extremamente novo e reflexivo, tanto da própria trajetória dele enquanto cineasta quanto dos tempos que vivíamos. Desde o título que remetia da «desconstrução» ao fato de existirem em seu trabalho o uso e abuso de auto-referências, tudo aquilo tinha muito a ver com o que vinha estudando na faculdade sobre a Pós-Modernidade. Desconstruindo Harry é um filme essencialmente pós-moderno. E, além disso, é um filme onde o diretor reflete sobre o seu modo de criação, sobre a sua família, sobre a maneira como ele se relaciona com as pessoas e com o mundo. Harry Block, personagem do filme e interpretado por ele, é ele mesmo, distorcido. Foi uma linda estreia.

Na sequência, vi na telona, durante o tempo que fiquei na capital pernambucana: Celebridades (1998), Trapaceiros (2000), O Escorpião de Jade (2001) e Dirigindo no Escuro (2002). E ainda Ponto Final — Match Point (2005), durante as férias de Carnaval, e Vicky Cristina Barcelona (2008), o único que vi num cinema fora de Recife, no Shopping Del Paseo, em Fortaleza. E a coincidência do estilo espanhol do Shopping coincidir com o cenário do filme foi fantástico.

As sessões de cinema marcam mais porque estão cheias de lembranças associativas: a pessoa com quem e onde você estava, o que aconteceu no dia, antes e depois da sessão. Lembro que depois de ver Celebridades com uma amiga ficamos tão empolgados que numa sequência vertiginosa seguimos para um barzinho da moda e de lá seguimos rumo à praia, onde passamos o dia.

Hoje temos salas de cinema em Juazeiro do Norte. Espero que além dos filmes comerciais, elas também saibam dar espaço aos grandes diretores e aos filmes que saem de tantos lugares desse planeta. Ao lado das salas comerciais, espero que continuem a resistir as salas de cinema alternativo, como as que coordeno, possibilitando a centenas de espectadores o prazer de ir ao cinema assistir filmes espetaculares, marcando suas vidas para sempre.

Toda a filmografia de Woody Allen:
1. O que há, trigresa? (What's up, Tiger Lilly?), 1966
2. Um assaltante bem trapalhão (Take the money and run), 1969
3. Bananas, 1971
4. Tudo que você sempre quis saber sobre sexo mas tinha medo de perguntar (Everything you always want to know about sex but were afraid to ask), 1972
5. O dorminhoco (Sleeper), 1973
6. A última noite de Boris Grushenko (Love and death), 1975
7. Noivo neurótico, noiva nervosa (Annie Hall), 1977
8. Interiores (Interiors), 1978
9. Manhattan, 1979
10. Memórias (Stardust memories), 1980
11. Sonhos eróticos numa noite de verão (A midsummer night's sex comedy), 1982
12. Zelig, 1983
13. Broadway Danny Rose, 1984
14. A Rosa Púrpura do Cairo (The purple rose of Cairo), 1985
15. Hannah e suas irmãs (Hannah and her sisters), 1986
16. A Era do Rádio (Radio days), 1987
17. Setembro (September), 1987
18. A outra (Another woman), 1988
19. Crimes e pecados (Crimes and misdemeanors), 1989
20. Simplesmente Alice (Alice), 1990
21. Neblina e sombras (Shadows and fog), 1991
22. Maridos e esposas (Husbands and wives), 1992
23. Um misterioso assassinato em Manhattan (Manhattan murder mystery), 1993
24. Tiros na Broadway (Bullets over Broadway), 1994
25. Poderosa Afrodite (Mighty Aphrodite), 1995
26. Todos dizem eu te amo (Everyone says I love you), 1996
27. Desconstruindo Harry (Desconstructing Harry), 1997
28. Celebridades (Celebrity), 1998
29. Poucas e boas (Sweet and lowdown), 1999
30. Trapaceiros (Small time crooks), 2000
31. O escorpião de jade (The curse of the jade scorpion), 2001
32. Dirigindo no escuro (Hollywood ending), 2002
33. Igual a tudo na vida (Anything else), 2003
34. Melinda e Melinda (Melinda and Melinda), 2004
35. Ponto final — Match point (Match point), 2005
36. Scoop — O grande furo (Scoop), 2006
37. O sonho de Cassandra (Cassandra’s dream), 2007
38. Vicky Cristina Barcelona, 2008
39. Tudo pode dar certo (Whatever works), 2009
40. Você vai conhecer o homem de seus sonhos (You will meet a tall dark stranger), 2010
41. Meia-noite em Paris (Midnight in Paris), 2011
42. Para Roma com amor (To Rome with Love), 2012
43. Blue Jasmine (Blue Jasmine), 2013. 
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Elvis Pinheiro é editor da Revista Sétima e professor. Desde 2003 é Mediador de Cinema no Cariri cearense.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 12, de 27 de novembro de 2013), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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