sexta-feira, 20 de dezembro de 2013
20 de dezembro de 1913: tropa do Governo Estadual tenta invadir Juazeiro
Há exatos 100 anos, no dia 20 de dezembro de 1913, tropas rabelistas tentaram invadir Juazeiro do Norte (à época grafada apenas como "Joaseiro") pela primeira vez. Inicialmente sob a alegação de que o Governo do Ceará (sob o comando do militar Franco Rabelo) estava unido ao estados fronteiriços — Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte — na missão de "varrer do território" os jagunços e cangaceiros, que eram sinônimo de "terras sem lei", de territórios entregues ao banditismo.
Juazeiro já convivia há anos com a pecha de "terra de arruaceiros, cachaceiros, cangaceiros", inclusive com o Padre Cícero sendo acusado de acobertar tais práticas, sendo acusado pelos seus detratores de dar guarida a criminosos de diversas partes do Nordeste que iam se refugiar no município.
Mas é preciso deixar claro que havia muito mais por trás dessa ofensiva rabelista em terras caririenses. Na verdade, desde 1911, quando o Padre Cícero selou um acordo de paz entre diversos prefeitos caririenses, numa reunião que entrou para a história como o "Pacto dos Coronéis" — alcunha questionada por Daniel Walker em artigo que pode ser lido clicando aqui: segundo o professor-pesquisador, autor de vários livros sobre o Padre Cícero e o Juazeiro, outras reuniões daquele tipo aconteceram na época, mas apenas a do patriarca do Juazeiro ficou marcada na história como um grande conchavo do coronelismo — estava decretado o apoio de Padre Cícero e Floro Bartolomeu (o baiano que era seu grande aliado na política) à oligarquia de Nogueira Accioly (ainda presidente do Ceará em 1911).
Mas pouco tempo depois Accioly foi deposto do cargo e o Ceará passou a ser comandado por Franco Rabelo. Padre Cícero, que era prefeito de Juazeiro durante essa troca de governantes, acabou por assumir um dos cargos de vice-presidência do Estado (acumulando ainda a função de prefeito juazeirense), devido a um acordo entre rabelistas e a oligarquia Accioly. Mas depois de algumas semanas, o novo Presidente do Ceará começou a empreender medidas contra o Padre Cícero — a primeira delas foi a exoneração do Padre do cargo de prefeito juazeirense.
A tensão entre os aliados do Padre Cícero e o Governo do Estado aumentava cada vez mais. Então Floro Bartolomeu resolveu tomar a frente das tratativas e logo estaria arregimentando um exército de jagunços para defender o Padre Cícero e Juazeiro. Ficou claro que o confronto armado seria apenas questão de tempo quando, na madrugada chuvosa do dia 9 de dezembro de 1913, Floro Bartolomeu e um grupo de jagunços invadiu o destacamento policial de Juazeiro e passou a contar com um arsenal de armas ainda maior.
Por ora deixaremos de lado detalhes das ameaças políticas e tentativas de golpes (que se sucederam de 1911 a 1913). Muitas dessas questões trataremos em futuras postagens sobre a Sedição de Juazeiro. Nesta postagem nos interessa falar da primeira ofensiva das tropas rabelistas em território juazeirense. Mas antes cabe um parêntese sobre a construção do Círculo da Mãe de Deus: como o ataque a Juazeiro era iminente (estava nítido que centenas de homens fortemente armados tentariam invadir a terra do Padre Cícero),l restou aos juazeirenses a união em prol de um plano mirabolante (aconselhado por Antônio Violanova, um ex-combatente de Canudos que residia em Assaré): a construção de um fosso cercando a cidade, um grande valado. A ideia era que o fosso impossibilitasse a invasão dos soldados adversários. A respeito de tal fato, nos conta Lira Neto:
"Parecia maluquice de um guerrilheiro aposentado. Mas Floro e Cícero concluíram que a ideia, por mais esdrúxula que pudesse ser à primeira vista, podia funcionar. Aos primeiros raios do sol do dia 15 de dezembro, conforme prescrevera o padre, a multidão de juazeirenses estava a postos com ferramentas diante da igreja. Durante seis dias ininterruptos, debaixo de sol e chuva, pelas manhãs, tardes, noites e madrugadas, rezando ave-marias, pai-nossos e cantando benditos, a população inteira da cidade se entregou à tarefa. Os homens cavavam a terra. Mulheres e crianças transportavam a areia em baldes e panelas, para depois empilhá-las em montes de dois metros de altura, bem contíguos às valas que iam sendo abertas, formando uma inexpugnável trincheira. Naqueles morros gigantescos de areia fresca, eram introduzidos canos de rifles em direção ao inimigo. Na falta de pás e enxadas para todos os braços, muitos ajudavam a revolver o solo com o que estava mais à mão, como machados e facões. As crianças menores e algumas beatas acudiam raspando o chão até mesmo com garfos e colheres trazidas da cozinha de casa.
O grande fosso, de nove quilômetros de extensão, com oito metros de largura e em alguns locais com até cinco metros de profundidade, ficou praticamente pronto ao fim do sexto dia de trabalho. A malha central do Juazeiro estava protegida pela trincheira, que serpenteava terreno adentro até alcançar a serra do Catolé. Em volta da casa do padre, no alto da colina, erguia-se uma poderosa muralha de pedra. Era, sem dúvida, uma obra engenhosa, extraordinária do ponto de vista da engenharia militar, principalmente se levados em conta o tempo exíguo e as ferramentas precárias com que foi construída.
Cícero abençoou o grande valado e resolveu batizá-lo com um nome que fizesse jus à fé com que fora edificado. Aquele não era apenas um fosso descomunal e uma imensa trincheira, que passara a envolver defensivamente o Juazeiro.
Era, nomeou Cícero, o 'Círculo da Mãe de Deus'."
O Juazeiro tentaria se proteger da ofensiva do exército de Franco Rabelo, que contava com todo o efetivo policial de Fortaleza. Como segue narrando o Lira Neto, "Rabelo não queria correr o risco de ver a resistência de Canudos reeditada. A ordem era arrasar Juazeiro de um único golpe. Comandados pelo coronel do exército Alípio Lopes de Lima Barreto, mais quinhentos praças foram enviados nos vagões da companhia ferroviária até Iguatu."
De Iguatu os soldados marcharam 180 quilômetros até o Crato, onde chegaram no dia 18 de dezembro de 2013. No dia 19 o coronel Alípio telegrafou ao Padre Cícero, propondo a rendição de Juazeiro. Sem resposta, resolveu juntar a tropa e partiu para a invasão no dia 20 de dezembro. Às duas da tarde a guerra começou, com os soldados do Governo surpreendidos pelo valado. Floro estava do lado dos jagunços, atirando e provocando baixas no "exército rabelista", enquanto o Padre Cícero rezava em casa. Trechos do relato de Lira Neto contam a sequência do confronto daquele dia:
"Outra arma eficaz contra a soldadesca eram as granadas de mão, improvisadas com garrafas de vidro preenchidas metade com pólvora e metade com pregos ou pedaços pontiagudos de ferro. Ateava-se fogo em um pavio de pano e jogava-se o artefato por cima do valado o mais longe possível. Seguia-se o estrondo e os estilhaços se espalhavam no ar, perfurando a carne dos inimigos. Os soldados, sangrando, buscavam proteção como podiam, atrás de árvores e arbustos.
O coronel Alípio não contara com tal reação. Muito menos com aquele surpreendente fosso. Como não conseguia enxergar o adversário, sua tropa atirava a esmo, sem oferecer ameaça alguma ao Juazeiro. Sentindo-se perdidos, muitos soldados haviam simplesmente debandado para dentro do matagal, recusando-se a servir de alvo fácil para mira do rifle inimigo.
(...) Às cinco da tarde. sem ter conseguido avançar um único centímetro em sua posição original, Alípio resolveu reunir os auxiliares imediatos para uma análise da situação. O quqadro era desolador. Estavam sem poder de fogo. Os caixotes com cerca de 25 mil cartuchos que haviam levado para o campo de batalha estavam quase vazios. Já se contavam 82 baixas, entre mortos e feridos. Perto de escurecer, só restava uma opção: ordenar que o corneteiro fizesse soar o toque de retirada para evitar uma hecatombe.
Às nove da noite, a população do Crato não acreditou quando viu aqueles homens voltarem à cidade derrotados, maltrapilhos, com cara de espanto, como se acabassem de retornar do Inferno. Havia registro de inúmeras deserções, inclusive as de alguns soldados que simplesmente largaram a farda e passaram a combater ao lado do Padim Ciço. Outros vagavam pelo mato, perdidos ou apavorados, sem querer voltar. Quando tentou reunir os soldados para contabilizar o total de perdas, o coronel Alípio percebeu que não tinha mais uma tropa nas mãos, mas sim um amontoado de homens de moral esfrangalhado. Muitos nem sequer obedeceriam, naquela noite, ao toque de recolher. Teriam de ser caçados à base de ameaças, um a um, trôpegos de medo e de cachaça, na zona do meretrício do Crato.
Quando levaram a Cícero a notícia de que as tropas estaduais haviam dado meia-volta sem que fosse registrada nenhuma morte entre os combatentes do Juazeiro, o padre levantou as mãos para o céu em sinal de agradecimento. Nosso Senhor Jesus Cristo olhara por eles, expôs. O Círculo da Mãe de Deus resguardara os bons dos ímpios, os fracos dos fortes, os oprimidos dos opressores, concluiu."
Mas essa foi apenas a primeira ofensiva contra o Juazeiro, o Padre Cícero e a tropa comandada por Floro Bartolomeu. Em outras postagens contaremos mais detalhes sobre os conflitos, os personagens envolvidos, o desenrolar político dos episódios, etc.
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Os trechos escritos por Lira Neto foram extraídos do livro Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão (Companhia das Letras, 2009).
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