sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Carol e Lili, A Garota Dinamarquesa



por Samuel Macêdo do Nascimento

Carol teve estreia no Festival de Cannes (2015) e traz a história de amor entre duas mulheres no início da década de 1950 nos Estado Unidos. Na época o país enfrentava problemas relacionados ao racismo e às questões de gênero. Rooney Mara que ganhou o Prêmio de interpretação feminina em Cannes nos lembra fisicamente a famosa atriz Audrey Hepburn, que interpretou Karen Wright em Infâmia, no mesmo ano do famoso Bonequinha de Luxo (Breakfast Tiffany's, 1961). Infâmia toca na questão da lesbianidade de maneira silenciosa e trágica. O filme também é estrelado por Shirley MacLaine que interpreta a personagem Martha Dobie que se apaixona por Karen Wright.

A Garota Dinamarquesa (The Danishy Girl) tem a direção de Tom Hooper e conta com a atuação de Eddie Redmayne que interpreta Einar Wegener e Lili Elbe - “como o rio Elbe”. Alicia Vikander interpreta Gerda Wegener, esposa de Einar. O promissor pintor da Dinamarca, Einar Wegener, tem a sua vida transdirecionada quando a sua provocativa esposa Gerda, que também é pintora, pede que Einar substitua uma de suas modelos para concluir um quadro de uma bailarina.

Cenas de amor e sexo entre Carol Aird (Cate Blanchett) e Therese Belivet (Rooney Mara) conduzem sequências do filme que traz a discussão dos preconceitos enfrentados por mulheres que amam outras mulheres. Nos anos sessenta e setenta a teórica feminista Monique Wittig escrevia na França os primeiros livros sobre o corpo da mulher lésbica. É nos anos 60 que surge a segunda fase do feminismo. As discussões, reflexões e ativismos fomentados nos primeiros anos do pós segunda guerra transbordam quando as mulheres passam a reivindicar direitos pelo seu próprio corpo e pelo seu desejo. A «mulher de comportamento estranho», como eram conhecidas as lésbicas nos campos de concentração do nazismo, se potencializa após a guerra.

O gesto e a ação de vestir uma meia e um sapato de mulher, faz com que Lili ganhe vida na relação do casal. Acredito que o nome Lili também não seja em vão, o nome doce também pode ser associada a personagem mítica Lilith, da lenda judaica, que é considerada para muitos, a primeira mulher do mundo, criada antes do homem, do barro e não da sua costela como Eva. Lilith foi mandada para a lua, por se recusar obedecer o deus judaico e o primeiro homem.

Carol Aird, uma mulher clássica da elite do seu país casada com um o homem de negócios e mãe de uma filha de quatro anos, conhece Therese, uma jovem imigrante que vive nos Estados Unidos e trabalha numa loja de brinquedos, enquanto compra um trem de brinquedo para a sua filha. Após realizar as compras de Natal, a misteriosa e sedutora cliente esquece seu par de luvas. O cruzamento de olhares entre ambas e o par de luvas tornam-se pretextos para que ambas criem vínculo de comunicação.

A Garota Dinamarquesa nos leva a refletir como os gêneros e os sexos são ensinados e controlados ao longo da vida, todos somos tornados “homens” e “mulheres”. Muitos teóricos da sexualidade e de gênero se dedicaram aos estudos, o francês Michel Foucault (1976), a norte-americana Judith Butler (1990), a brasileira Berenice Bento (2008), entre outros. Os discursos reguladores do Ocidente: da escola, do Estado, da Ciência, vão criando as normas e regras daquilo que convencionalmente entendemos por masculino e feminino. Lili passa a observar as mulheres do seu tempo para se tornar mulher e é considerada louca pelos médicos ao afirmar que é tão mulher quanto a esposa de Einer Wedege.

Enquanto isso Carol enfrenta um processo de divórcio e é surpreendida por uma cláusula de moralidade no acordo de separação pelo suposto envolvimento com Abby Gerhard (Sarah Paulson), sua amiga de infância e madrinha de sua filha. Antes do Natal, seu ex-marido a surpreende levando a filha de quatro anos para realizar uma viagem e depois Carol é informada que só verá a criança depois do processo de divórcio. Desolada, Carol convida Therese para viajar pelo país no período das festividades do fim do ano como pretexto para esquecer os problemas relacionados ao divórcio.

Lili vai “matando” Einar aos poucos e isso faz com que ela enfrente problemas em seu casamento, com sua arte (a pintura), com o seu próprio país e com a comunidade ao qual está inserida. Existem muitas sequências em que Lili se observa através de espelhos. Ao se projetar no espelho, Lili ganha materialidade e vida. Em uma cena particular, Einar se despe em frente ao espelho, esconde seu genital masculino com o truque* e se agarra como uma roupa de mulher.

Carol ganha aspectos de filme de viagem porque é dentro do carro, nas pousadas e na estrada, que Carol e Therese passam a fortalecer a relação. Ambas compartilham histórias, segredos e intimidades. Therese é apaixonada por fotografia e leva sua nova câmera, presente de Carol, para documentar a viagem, as pessoas e a própria amiga. Carol retrata as dificuldades enfrentadas pelas mulheres daquele período. O comportamento, as relações sociais e de trabalho, a cultura e todas as esferas da vida em coletividade continuavam engessando a mulher, os seus desejos e a sua liberdade do corpo. Carol e Therese são cortejadas por homens que as lembram - a todo momento - que uma mulher deve aceitar a suposta naturalidade dos gêneros.

A indumentária de Lili possibilita que seu antigo corpo ganhe uma outra materialidade. Depois de passar por médicos e tratamentos distintos, Lili conhece um médico que propõe que ela faça a cirurgia de readequação do gênero. Lili é a primeira mulher trans da história a fazer o procedimento cirúrgico num período em que não havia debates, estudos e pesquisas sobre a transexualidade. Lili Elbe escreve toda sua experiência em diários que se tornarão livro. É importante lembrar que Lili passa a ser musa de Gerda Wegener que passa a retratar Lili em diversas pinturas chegando a expor esses quadros em Paris. Podemos também considerar A Garota Dinamarquesa um filme feminista que concorreu a quatro indicações ao Oscar 2016: Melhor Ator para Eddie Redmayne (que levou o prêmio do ano passado), Melhor Atriz Coadjuvante para Alicia Vikander (Greta Wegener), Figurino e Design de Produção.

Premiado com o Queer Palm, Carol concorreu ao Oscar de Melhor Atriz para Cate Blanchett, Melhor Atriz Coadjuvante para Rooney Mara, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Trilha Sonora Original, Melhor Fotografia e Melhor Figurino. Todas essas categorias são marcantes nos elementos que constroem misancene: atuação, trilha sonora, roteiro baseado no livro The Price of Salt, fotografia e indumentário. Juntos eles se conectam e nos transportam para a primeira década do pós-segunda guerra, caracterizada por uma sociedade das tecnologias da comunicação (rádio, TV, jornal impresso), mas que por outro lado enfrentava preconceitos gerados pelos fantasmas que perseguiram e exterminaram os diferentes nas primeiras décadas do século XX.

*Truque é uma expressão utilizada pelas travestis. Não existe travesti sem o truque. O truque nada mais é que a ação de esconder o pênis. A partir do truque as travestis aparentam ter uma vagina.
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Samuel Macêdo do Nascimento é formado em Comunicação Social (Jornalismo), Mestre em Cultura e Sociedade e membro do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 33, de julho de 2016), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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