terça-feira, 27 de setembro de 2016

Uma Noite em 67



por Davi Oliveira

Um longo fio conecta um microfone a uma caixa de som, grandes holofotes, músicos lendários, acordes épicos, protestos, censura, vaias, violão quebrado, papéis de mocinho e vilão, uma plateia comprada em nome da audiência, recortes de interesses pessoais dos diretores... Parece uma ficção do gênero musical, no entanto esta é a atmosfera sob a qual foi realizada o famoso e polêmico 3º Festival da Música Popular Brasileira, em outubro de 1967.

Este festival foi criado pela TV Record e teve como participantes Caetano Veloso, Chico Buarque, Gilberto Gil, Edu Lobo, Roberto Carlos, dentre outros que possuíam como objetivo expor seus trabalhos e sua forma de pensar a música. Porém, este festival dirigido por Solano Ribeiro e Paulinho Machado nada mais era, em suas concepções, do que um simples programa de televisão.

Os diretores relatam que pensavam o festival como um programa que tivesse um protagonista e um antagonista, incentivando a plateia até mesmo a vaiar. Com isto, foi posto um microfone sob a plateia para que o telespectador que acompanhava em sua residência, pudesse se sentir “mais próximo” do show, ouvindo as manifestações do público.

Este programa ocorreu durante momentos importantes da história da Música Popular Brasileira. Primeiramente, nesta mesma época a música estava passando por uma fase de transição, da complexa Bossa Nova, gênero completamente influenciado pelo Jazz americano e pela influência do ritmo do Samba brasileiro (que por sua vez foi influenciado por ritmos africanos), em direção ao Tropicalismo, proposta estilística influenciada pelo movimento de contrarreforma que foi provocado pelas novas concepções da Arte Contemporânea na Europa e no continente Norte-Americano.

Com o Tropicalismo, buscava-se criar uma música que evidenciava a cultura “dos esquecidos”, trazendo à tona tudo o que o Brasil possuía de identidade e produção cultural na sua mais ampla pluralidade. Esta proposta de reforma foi tão marcante que gerou a memorável “passeata contra a guitarra elétrica”. A grande questão não era a inserção do instrumento (guitarra) na música brasileira, mas sim, a carga cultural do rock americano que passou a influenciar este movimento no ápice do surgimento e desenvolvimento da cultura pop.

Também encontramos em 67 a força da Ditadura Militar no Brasil, que acabou sendo fonte de criação das obras mais repletas de signos e figuras de linguagem da história da Música Popular Brasileira, devido à repressão esmagadora da censura no país. Na luta contra o exílio, torturas, falta de direitos para a população, que surgiram célebres compositores que fizeram da música e do movimento Tropicalista, sua militância contra a Ditadura.

O documentário Uma noite em 67, dirigido por Renato Terra e Ricardo Calil, evidencia através dos depoimentos coletados, todo este cenário cultural e histórico que o Brasil passava durante a realização do festival. Este audiovisual é marcado por depoimentos completamente descontraídos que criam uma atmosfera onde o telespectador se sente “frente a frente” com o entrevistado, como se estivessem tendo uma conversa casual em sua sala.

A inserção de trechos do festival de 67 no decorrer do filme, possibilita esta “ruptura” da constante tempo, transportando-nos nostalgicamente até o momento em que tudo ocorreu. Nestes fragmentos do programa encontram-se momentos marcantes do festival, como o ápice de ira de Sérgio Ricardo, que após as vaias da plateia não permitirem que ele pudesse tocar um novo arranjo para sua música “Beto Bom de Bola”, quebrou o violão no palco e arremessou-o na plateia, resultando em sua eliminação do programa.

Outro aspecto interessante é a surpresa dos músicos participantes deste festival, que ao serem entrevistados, descobrem que havia torcida organizada contra alguns, que existiam mocinhos e vilões e que tudo não passava de uma manipulação em prol da audiência. Talvez sem a existência deste documentário, estivessem até o presente momento sem sequer fazer ideia de que tudo isto ocorria nos bastidores. Estas revelações instigam reflexões sobre programas de auditório, interesses midiáticos, o quanto que o público realmente participa na construção de sua identidade e em como o mercado pode violentar a cultura e os artistas em prol do capitalismo.

Surgimento do Tropicalismo e da Jovem Guarda, o “lançamento” de ícones da música brasileira, cenário político do país, manipulação dos meios de comunicação e um panorama da relação entre compositores e a música, são os recortes que constroem este documentário, tornando-o um registro importante da história do país e um “documento assinado” pelos grandes nomes da Música Popular Brasileira. 
____


Davi Oliveira é graduado em Música pela UFCA, violoncelista e compositor de músicas minimalistas. Estuda e trabalha com performance, dança contemporânea, teatro e Cinema. É terapeuta Holístico, professor de Yoga, Tai Chi Chuan, Reikiano e estudante de Esoterismo.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 32, de junho de 2016), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

Textos recentes da Revista Sétima postados no Blog O Berro:
- O documentário da subversão no Cariri: ‘O Caldeirão da Santa Cruz do Deserto’ e a multidão exterminada 
- Sales e salas
- A época em que está meu espírito
- Meus 10 melhores filmes de todos os tempos, por Ailton Jesus 
- As asas de Ythallo Rodrigues 
- Ecos que atravessam os séculos
- Canal Conspiração: uma cooperativa de audiovisual local, irreverente e subversiva 
- ‘Hannah Arendt: Ideias Que Chocaram o Mundo’, filme de Margarethe von Trotta

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário