terça-feira, 30 de agosto de 2016

Precisamos Falar Sobre o Kevin



por Íria Maria

Embora orientados pelas catalogações das obras cinematográficas, os que apreciam cinema enxergam cada enredo sob um prisma próprio, desenhado conforme o conhecimento e as experiências de cada um. Tendo a psicanálise como atual interesse, os enredos têm alcançado meus sentidos por esse viés. A ficha caiu quando assisti no Cinematógrapho SESC Juazeiro, A Dupla Vida de Véronique, do Krzysztof Kieslowsk, embora tenha despertado essa atenção à linguagem do inconsciente com uma produção de 2011, Precisamos Falar Sobre o Kevin (We Need to Talk About Kevin, Dir. Lynne Ramsay, 2011), sob a orientação do Prof. Me. Rafael Lobato, cujo apanhado final, construído com a colega Cícera Maria (Fatec Cariri), divido com os leitores da Sétima.

Em estado de desamparo fundamental, nasce Kevin. Naquele contexto não há que se falar em mãe que “espera um bebê”. Não planejado, não sonhado, sobra-lhe, como única referência para se constituir, o não desejo; a morte em vida personificada no discurso do outro que lhe nega o investimento libidinal necessário à formação basilar do inconsciente que se molda. Na produção do imaginário da mãe, que o nega, a projeção de alguém que nem deveria ser.

A partir desse estado de neotenia, inscreve-se no ego de Kevin, sem colo, sem leite, portanto privado de saudável erogenização oral primária, marcas profundas e irreversíveis. A formação de sua personalidade, com gradativa compreensão de mundo e consequente internalização do seio “bom” ou “mau”, terminologias empregadas por M. Klein, prossegue sendo fortemente influenciada pela mãe que já trazia as marcas de difícil relacionamento materno e, notoriamente, uma profunda inadaptação às mudanças psicossociais advindas com a chegada de um filho.

E como o sujeito sempre responde aos investimentos do outro, de qualquer forma, não encontrando apoio na realidade, há que se complementar nas alusões e fantasias.

Exemplo possível das necessidades não atendidas de Kevin, a partir de uma linguagem não verbal, característica dos bebês, é a cobrança por tempo incomum de cuidados com sua higiene íntima (pseudo (?) descontrole fecal). Fica patente a impossibilidade materna de ser continente com as necessidades e angustias de seu filho e descaracterizada a figura da «mãe suficientemente boa» descrita por Winnicott como a progenitora que, a despeito de teorias e técnicas estabelecidas, permite-se vivenciar emocionalmente a maternagem na singuralidade que cada cria desperta.

Kevin nunca se enquadrou nos parâmetros ditos normais de desenvolvimento psicossocial infantil, qualquer que seja a linha teórica observada. As atitudes dos pais, especialmente no fato da mãe não conseguir administrar o amódio nutrido pelo filho e do pai em não assumir a indispensável função paterna de castração, alimenta a personalidade doentia do garoto.

A tendência inata de criança difícil, somada ao ambiente hostil, arma a bomba que detona fácil na adolescência. Não reconhecendo o tempo linear e cronológico, o agora desejo de Kevin, que ainda reside latente desde os instantes primeiros de seu existir humano, abre “caminho à força para uma satisfação real” (Freud): a morte, meticulosamente engendrada, com alvos físicos e psicológicos bem definidos.

Montado o cenário teatral, dá-se como ato final um bem elaborado dispositivo catártico, uma cena de arte que, numa perspectiva lacaniana, acontece em torno do vazio. Catarse, cujo público, e neste sua mãe, sofre, em análise final, a obrigatoriedade de colocar-se em escuta, pela técnica cênica de um desfecho homicida. “O teatro enquanto um mecanismo do inconsciente é um lugar que instaura uma falação em torno do Buraco – do Vazio” (Pizarro Noronha, 2008).

Observe-se que encenação teatral é comum à vida de Kevin. Seus pais, diuturnamente, negam a realidade, imersos em um sonho americano de família ajustada. Tudo a sua volta esboçava ficção, o núcleo familiar vivia encenando uma peça, que instigou o inteligente Kevin a tornar-se mais que protagonista e diretor, o autor do próprio enredo. Dominar foi exercício de toda sua vida, como resultado de um silêncio cúmplice, consequência da culpa, do medo, impingidos por segredos familiares já reportados por Freud no início do século XX.

Se ninguém queria falar sobre Kevin, não foram considerados, em tempo hábil, os sintomas resultantes de ressentimentos e conflitos gerados em relações familiares doentias.

No desfecho dessa intensa interação mãe/filho, ambos são condenados. Ele à prisão, ela ao ostracismo social. Igualam-se. Não há redenção para um, sem a desculpabilização do outro.

Concluída a análise, resta dizer que o filme tem méritos, independente da área de interesse do espectador. É, inclusive, recomendável quando se rediscute a redução da maioridade penal. Pra instigar este debate entre os que se aventurarem a assistir o drama/suspense, indago: tem a norma legal o condão de evitar tragédias dessa proporção?

Então... Precisamos falar sobre ISSO!
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Íria Maria é Psicanalista e Psicóloga em formação. Colaboradora especial da edição 31 da Revista Sétima.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 31, de maio de 2016), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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