domingo, 7 de agosto de 2016

‘Hannah Arendt: Ideias Que Chocaram o Mundo’, filme de Margarethe von Trotta



por Cícero Émerson do Nascimento Cardoso

Hannah Arendt: ideias que chocaram o mundo (2013), de Margarethe von Trotta, é uma cinebiografia da pensadora evocada no título que, com a finalidade de escrever uma reportagem para o The New Yorker sobre o julgamento de Adolf Eichmann, em Israel, produziu uma das obras mais polêmicas do século XX: Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal (1963).

Para o mundo (e o filme de Trotta retrata isto enfaticamente), foi considerado paradoxal o fato de que uma judia, que sofreu de perto a experiência proporcionada pelos ideais nazistas, tenha concluído, em detrimento da opinião pública, que Adolf Eichmann não era tão monstro como todos o consideravam, por ocasião de seu julgamento.

Ao afirmar que nem todos os que praticaram os crimes de guerra eram facínoras, e que alguns judeus participaram da matança dos seus iguais, Hannah Arendt foi “bombardeada” por críticas até de pessoas mais próximas. Alguns a consideraram fria, inflexível e arrogante.

Em carta endereçada a Gershom Scholem, Arendt afirma: “O pensamento tenta atingir a profundidade, tocar nas raízes, e, no momento em que se ocupa do mal, se frustra porque não encontra nada”.

Uma das principais discussões de Arendt, que surge de modo recorrente ao longo de sua obra, diz respeito à sua concepção sobre “o mal” – desta feita, o mal que vai ao seu extremo por meio do totalitarismo que tem nos campos de concentração nazista, disseminados por Adolf Hitler, sua manifestação por excelência. O mal, conforme ela nos apresenta, atingira o absurdo em decorrência dos conflitos envolvendo, por exemplo, a Alemanha e seus ideais nazistas. Pensar os atos dos envolvidos nos campos de concentração, numa perspectiva do mal, desse modo, suscitaria a necessidade de repensar a própria ideia de mal. Assim, ao assumir, submetidos a imposições burocráticas, a condição de executores de judeus nos campos de extermínio, eles estariam cumprindo ordens para além de suas capacidades de pensar sobre a ação que executavam.

Arendt formula, diante disso, o conceito de “banalização do mal”, que consiste na ideia de que o indivíduo não concebe mais pensamentos por si mesmo e, nesta perspectiva, se deixa levar por uma lógica que o força a submeter-se e o torna incapaz de conceber um pensamento inteligível sobre as ações que, burocraticamente, ele é forçado a realizar.

Em Eichmann em Jerusalém, Arendt discorre com mais precisão sobre o conceito de “banalização do mal”. Sua tese é a de que Eichmann, frente ao absurdo proveniente do nazismo, é “a personificação” dessa banalidade. Ele, por este ângulo, não passaria de um funcionário público impelido a cumprir, condescendentemente, seu dever.

Em suma, a racionalidade e o cientificismo, para Arendt, figuram como condição sine qua non para que cerca de seis milhões de judeus fossem mortos. A tecnologia empregada para fins de extermínio mostrou-se uma ação tão cínica quanto eficiente, tão malevolente quanto burocratizada. E, em decorrência disso, vários funcionários públicos, obrigados a cumprir, sem reflexões, o que era determinado pelo cargo que exerciam, tornaram-se produto do nazismo.

Além das atuações vigorosas, essa obra cinematográfica acerta quanto à discussão de temas complexos que dá à obra a tensão necessária para que o espectador se aproxime das ideias dessa personalidade feminina complexa. Por meio de flashbacks, o filme retoma fatos importantes da vida de Arendt, muito bem interpretada por Barbara Sukowa, e apresenta, além disso, diálogos criativos e bem delineados. São merecedores de elogio, também, a direção, a montagem e o roteiro. Ele merece ser visto e revisto porque, além de instigar o espectador a conhecer as ideias dessa filósofa-professora-repórter, também suscita uma reflexão sobre a capacidade que o indivíduo deveria trazer em si de pensar, discernir, ponderar.

Em tempos em que pensar, para alguns, se constitui um ato pouco usual, tendo em vista a incapacidade destes de observar com criticidade os vários ângulos com que um fato é apresentado, ter acesso à visão de mundo de Arendt, por meio dessa obra cinematográfica, é mais que válido. Pensar é um ato libertador. Isto foi o que mais aprendi ao ver esse filme, e creio que quem tiver acesso a ele, se não se entrincheirar em visões restritivas tão em voga, poderá aprender também.

Hannah Arendt nasceu em 14 de outubro de 1906, na Alemanha, e faleceu em 04 de dezembro de 1974, nos Estados Unidos. Dentre suas principais obras podemos destacar: As origens do totalitarismo (1951), A condição humana (1958), Sobre a revolução (1963) e Eichmann em Jerusalém (1963). E a diretora alemã Margarethe von Trotta, além de dirigir Hannah Arendt: ideias que chocaram o mundo, dirigiu também: Os anos de chumbo (1981), Rosa de Luxemburgo (1986), Felix (1987) e A promessa (1994).


Hannah Arendt: ideias que chocaram o mundo
Direção de Margarethe von Trotta. Produção: Heimatfim Gmbh. Elenco: Barbara Sukowa,
Axel Milberg, Janet McTeer.  Alemanha / França: 2012. Filme (109 min). Drama.

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Cícero Émerson do Nascimento Cardoso: Professor de Língua Portuguesa da Rede Pública de Ensino do Estado do Ceará; graduado em Letras pela Universidade Regional do Cariri; especialista em Língua Portuguesa, Literaturas Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa; mestre em Literatura Comparada, pela Universidade Federal da Paraíba; membro do Núcleo de Pesquisa em Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Regional do Cariri – NETLLI; membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em Literatura e Sociedade Contemporânea - GELISC; membro do Grupo de estudos SÉTIMA de cinema. Autor do livro de contos Breve estudo sobre corações endurecidos (2011), Romanceiro do Norte Juazeiro (2014) e A revolta de Antonina. Publicou os folhetos de cordel A Beata Luzia vai à guerra e A artesã do chapéu (ou pequena biografia de Maria Raquel). Teve poema selecionado para o evento literário realizado pelo CCBNB “Abril para Leitura” em 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016. Tem texto publicado pela Revista de Literatura e Arte Boca Escancarada e teve soneto selecionado para antologia do Concurso Chave de Ouro de Sonetos - os Cinquenta Melhores, da Academia Jacarehyense de Letras. Desenvolve trabalhos vinculados à Literatura, Filosofia e Cinema.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 30, de abril de 2016), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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