terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

A hora e a vez



por Harlon Homem de Lacerda

Tava demorando pra começarmos a falar sobre Guimarães Rosa. Talvez demore mesmo mais algum tempo, pois agora falaremos é sobre Matraga, sobre Sagarana e sobre esse sertão que é dentro da gente. A hora e a vez de Guimarães, o homem, o escritor, ficam pra outro dia. Aproveitamos aqui alguns pontos de um trabalho acadêmico apresentado ano passado em João Pessoa, na UFPB. Comecemos, então.

A obra Sagarana de João Guimarães Rosa revelou um novo universo na literatura. A crítica demonstrou calorosa recepção diante dos contos ou novelas do, até então, poeta diplomata mineiro. As tensões e leituras e concepções promovidas pelos críticos em torno dos textos de Guimarães Rosa na década de 1940 estendem-se até hoje, numa espiral que se contorce entre a repetição de muitas daquelas concepções primeiras e a construção de uma ou outra leitura realmente séria e contributiva.

A progressão quase geométrica das abordagens da obra rosiana mostra-nos, num primeiro momento, uma redução simplificadora do mundo e das personagens dos outros trabalhos à configuração temática e estrutural do “romance maior”, Grande Sertão: veredas. Muitos querem que a obra de Guimarães Rosa seja entendida através de um centro magnético, o “romance maior”, para o qual todas as outras obras confluem. Discordamos. Antes de pensarmos na organicidade da obra rosiana, pensamos numa postura criadora pela qual a representação de elementos humanos converge para uma coincidência temática que nunca é apresentada da mesma maneira, embora apresente traços de similitude (difícil de superar na obra de um mesmo escritor).

É aqui que entra Augusto Matraga. Um dos contos mais festejados de Sagarana. Vários críticos já apresentaram uma opinião sobre esse herói rosiano e eu entrei nessa onda também. Apresentamos agora algumas observações que fizemos.

Colocamos desde já uma advertência e um conselho: é bom que você já tenha lido (ou corra agora pra ler) “A hora e vez de Augusto Matraga” pra seguir neste texto.

Pois bem, algumas provocações que se nos apresentam diante do conto, muito debatidas pela crítica, são as referentes a possíveis simbolismos místicos contidos no conto. Destaquemos alguns: o mais aventado pela crítica é o da relação entre o mito de Augusto Matraga e a vida (ou mito) de Cristo ou de um cristão santificado; logo depois, e sempre relacionado ao primeiro, temos as análises do ferro de marcar do Major Consilva – o triângulo dentro do círculo; mais simbolismos estão relacionados à onomástica do conto: Matraga, Dionóra, Mimita, Ovídio, Augusto, Joãozinho Bem-Bem, Sariema. A crítica deteve-se principalmente nos nomes de Joãozinho, Augusto Matraga e Ovídio.

Em primeiro lugar, antes de enxergarmos a centralidade da mitologia cristã como configuradora do enredo do conto, entendemos que outros dois mitos estão diretamente associados ao de Augusto Matraga: o mito de Dionísio, já citado pela fortuna crítica, e de maneira mais central e que envolve os outros mitos, o da Fênix. Esse mito dos mais antigos, descrito por vários poetas e historiadores, foi aproveitado na mitologia grega (no mito de Dionísio) e pela mitologia Cristã. A Fênix é o animal sagrado que ressurge, renasce, ressuscita. Versões do mito falam de um ressurgimento através das cinzas, da fumaça etc. Um dos poetas que tratam do mito da Fênix é Ovídio, no livro Os amores. O mito da Fênix se aproxima mais desse simbolismo em torno do mito de Matraga também pela importância dos pássaros no conto (desde a Sariema até as Maitacas) e no texto de Ovídio há uma variada referência a muitas espécies de aves, assim como no conto.

Com relação à marca do Major Consilva, o triângulo dentro de uma circunferência, é possível, para manter a coerência de nossa leitura, que esteja associada tanto à santíssima trindade, como quer a fortuna crítica, quanto à fênix, sendo a pirâmide ou triângulo dentro do círculo uma das representações da fênix, da transformação – na simbologia maçônica. Com relação ainda ao símbolo maçônico da pirâmide ou triângulo dentro do círculo é significativo que ele traga a inscrição “Novus ordo seclorum” ou nova ordem dos tempos, numa possível relação ao novo dono das Pindaíbas ou ao novo Augusto.

Quanto à onomástica, mencionamos possíveis significados do nome Dionóra (que é nora duas vezes) e de Mimita (me imita); Augusto tem relação direta com o imperador romano se pensarmos que Ovídio tem relação direta com o poeta latino. Uma vez que o imperador Augusto exilou o poeta Ovídio, o autor-criador dispôs no conto, talvez jocosamente, a relação de forma trocada – o exilado agora foi Augusto. A escolha do nome Ovídio é significativa pelo comportamento da personagem, que ama Dionóra de verdade, por que sabe amar (Os Amores de Ovídio estão diretamente relacionados com o enredo do conto). Matraga pode ter tanto relação com maitaca, ou matraca, ou conter a palavra “má” em oposição ao Bem-Bem, a raiz tragos bode, matrem (mãe em latim) ou, não ser nada, apenas um nome inventado assim como a estória, segundo nos informa o próprio narrador.

“A hora e vez de Augusto Matraga” é um texto que desenvolve e deixa que se desenvolvam a partir dele várias possibilidades. É impossível resolver ou construir uma leitura definitiva dele. Mesmo que tentássemos usar, na produção de nossa leitura, o jogo semântico e sintático, simbólico e místico de João Guimarães Rosa (como vários críticos gostam de tentar) não seria possível determinar um paradigma para o Mito de Augusto Matraga que ultrapassasse o paradigma da tentativa, que seria a noção de que cada leitura, cada experiência agrega um valor distinto à obra de arte. Sem esse paradigma a literatura se esgota e se extingue.

A noção de Kairós, de momento oportuno, como leitmotiv do conto leva-nos à necessidade de compreensão do próprio mito grego: quando não estamos atentos à passagem do kairós, ele já está muito distante de nós, com seus pés alados. Esta compreensão aliada ao mito da Fênix, de ressurgimento, de eternidade, de nova chance para não perder o kairós. É isso que acontece a Augusto. Ele precisa de uma nova chance para perceber o pôr do sol, as maitacas, as mulheres, a vida. Esta lição, digamos assim, é essencial para entendermos a própria construção da vida, do ponto de vista humano. A irrepetibilidade do ato, o nosso não-álibi na existência faz com que tenhamos poucos momentos oportunos para transformarmo-nos, para ressurgirmos das cinzas de uma rotina muitas vezes inerte e estanque.

Em nossa leitura procuramos fugir ao exotismo que qualifica o universo rosiano por entendermos que o ambiente de Augusto Matraga, por exemplo, é um ambiente familiar, próprio a nós mesmos – brasileiros. Da mesma forma que é universal por ser humano, tratar do humano. Não há um regionalismo universal, neste caso. Há uma criação humana, tão regionalista quanto a Ilíada ou Os irmãos Karamázov, que se destaca pela genialidade criadora de Guimarães no trato com as palavras, as ações, as personagens, as cantigas, as descrições de ambiente, de tempo etc. (sertão, meu amigo, é dentro da gente!). Neste sentido, a única discussão que não insistimos em travar é a de saber se “A hora e vez de Augusto Matraga” é uma novela ou um conto. 
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

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