terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Reinvenção do tempo



por Harlon Homem de Lacerda

Ainda é difícil, ao menos pra mim, ler um romance de Chico Buarque sem pensar no compositor, no cantor. Mas, pelo menos desde Budapeste, é uma tarefa que me agrada fazer. Quando tive notícias do novo romance, que trazia uma história de Sérgio Buarque ou um caso da família Buarque de Holanda, fiquei ainda mais curioso sobre esse irmão que Chico nos apresentaria.

O Irmão Alemão de Chico Buarque (Companhia das Letras, 2014) é um romance que nos faz pensar a todo instante. Com um narrador tecendo fios de fantasia sobre um tecido de memórias e documentos, o enredo nos leva por um caminho que segue pela biografia, pela autobiografia, pela historiografia, pelos labirintos de tempos misturados entre o que aconteceu e o que poderia acontecer. A ironia é o compasso que pontua todo esse caminho.

Pra quem já leu ou ouviu falar das biografias de Sérgio Buarque de Holanda e de Chico Buarque, a leitura dessa narrativa faz sorrir em diversos momentos: o episódio do roubo de carro na infância de Ciccio, por exemplo, ou o instante em que o narrador diz que conhece mesmo é literatura e não música etc. Outro fator que marca o romance é a metalinguagem, ora sutil ora estampada, sempre seguida de um tom irônico dotando o livro de uma marca quase lírica, muito parecido (e é quase inevitável falar disso) com as letras das canções de Chico Buarque.

Lembro agora da canção “Cala a boca, Bárbara” que tem duas estrofes espelhadas, na qual versos da primeira estrofe são repetidos com algumas palavras diferentes na segunda, criando um paralelismo que impede de ler uma estrofe sem a outra. O romance evolui com esse mesmo paralelismo, em vários níveis: impedindo-nos de ler a narrativa sem a História ou a biografia; impedindo-nos de avançar no tempo narrativo sem notar se o verbo está conjugado no futuro do pretérito ou no presente.

Esse paralelismo labiríntico criado por Chico Buarque pode trazer a um leitor desatento certo desconforto ao imaginar que o narrador fala sempre de si mesmo numa construção monológica, num tom emotivo que nunca muda e que pouco evolui ao longo da narrativa. Mas, se prestarmos bem atenção, o acento irônico se encaixa bem aqui, nessa ideia de devassar e de conhecer a vida do artista e do intelectual por meio das notícias advindas de biografias ou de programas de fofoca. Aqui, as várias linguagens utilizadas na construção do romance acentuam-se e trazem uma novidade que me permito comparar a uma produção de Quentin Tarantino, de reescrita completamente livre da História, de reinvenção do tempo.

A surpresa da existência de um irmão alemão, fruto da passagem de Sérgio Buarque de Holanda pela Alemanha entre 1929 e 1930, une-se a uma reconstrução da memória de Francisco de Hollander, o professor de Português, que segue o rastro do irmão através de uma São Paulo ainda amigável nos anos 1950, de um período inescapável dos tempos da Ditadura Militar e de um novo milênio enredado nas novidades da internet.

A personagem de destaque é Dona Assunta (que poderíamos talvez confundir com Dona Maria Amélia), a mãe e mulher que, com seu tom italiano, sabe de tudo o que acontece na sua casa, pois sabe onde estão todos os livros nas estantes que mantêm a casa em pé. 
____

Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário