quinta-feira, 7 de agosto de 2014

Poesia e realidade



por Amador Ribeiro Neto

Rodrigo Garcia Lopes é poeta, romancista, tradutor, jornalista, compositor e professor doutor em Letras. Estúdio realidade (Rio de Janeiro: Editora 7Letras), seu mais recente livro de poesia, é finalista do Prêmio Portugal Telecom. Dividido em 3 partes, o volume traz no apêndice aforismos teóricos sobre poesia. Isto deixa claro que o poeta prima pela consciência de linguagem.

O poeta escreve poemas muito bem realizados como “Enquanto você lê isto”. Aqui, os versos refletem-se em movimento de eterno retorno. Ao modo metalinguístico diz: “este secreto canto, duplicado num espelho”. O poema inicia e fecha-se com o mesmo verso. Circularmente.

Além disto, o poeta visita formas diferentes do poema como o epigrama, o oriki, o haicai, o poema em prosa e a poesia concreta. A riqueza de intertextualidades, de interações intersígnicas e intercódigos conferem ao livro um leque de múltiplas dicções.

O aforismo 23 pontua: “a poesia atua com mais frequência [que a prosa] em saltos, cortes, surpresas, desconstruções sintáticas, frustração de expectativas, associações, conexões, desconexões”. De fato a poesia é trabalho com a linguagem, num modo novo de dizer o velho. Poesia é desvio causado no olhar mecanizado, viciado, acostumado aos clichês. Quem repete o mesmo, sem trabalhar a mesmice numa linguagem provocativa e provocadora, não faz poesia. Fica no universo do prosaico. E de um prosaico bem reles.

Rodrigo Garcia Lopes revela que continua sendo o grande poeta dos livros Polivox e Mônada, por exemplo, em “Epigrama à moda de Marcial”: “Sabe o que faz Clemente // quando, numa noite fria, // sem ideias, sem amor, sem companhia, // luta contra o branco de sua mente? // Ele me copia”. A ironia advém do fato de que São Clemente, quando papa, introduziu a palavra amém nas cerimônias religiosas. O poeta parte deste dado biográfico para copiar o santo, invertendo a situação: no poema, o poeta detém a palavra e seu poder de preencher vazios. E devolve-a ao santo, num gesto de irônica misericórdia, já que este não sabe o que fazer com a própria mente vazia.

É uma pena que os bons momentos sejam apenas circunstanciais. Quem conhece o poeta que Rodrigo Garcia Lopes é, desaponta-se com Estúdio realidade. O livro, sem dúvida, tem um projeto deliberado de experimentar a linguagem poética em várias modalidades. Mas, no geral, acaba rendendo-se a uma malfadada espontaneidade.

Na quase totalidade os poemas são o avesso do que propõe o aforismo citado. O poeta tem consciência de linguagem, mas a linguagem produzida raramente é poética. Poema “Lar”: “Viver em tantas cidades / fez de lar uma palavra estranha. // Há casas em nossas entranhas / e, dentro, apenas estações”. Onde está, por exemplo, a “frustração de expectativas, de associações, conexões”? O poema torna-se previsível a partir do segundo verso. Uma pena.

A mesmice continua em: “O criminoso era poeta. Seu corpo, pálida página, jazia sobre a mesa, como quem procura um autor. Os suspeitos de sempre: metáforas, paronomásias, figuras de linguagem”. Faltam “cortes, surpresas”. Sobram: prosaísmos e clicherias. RGL está devendo-nos um livro de poesia. 
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 01 de agosto de 2014, p. 7.

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