terça-feira, 15 de julho de 2014

Saber com sabor



por Amador Ribeiro Neto

Os colegas com quem tenho a alegria de trabalhar no curso de Letras da UFPB e, em especial, os meus alunos, da graduação e pós-graduação, sabem que meu lema de trabalho é "saber com sabor". Já na primeira aula de cada curso anuncio o que me denuncia: o conhecimento não pode estar desvinculado do deleite. O lema saber com sabor fui buscar nas reflexões de Barthes sobre as letras, ou seja, sobre língua e literatura.

Quero deixar claro que, mesmo não me considerando um barthesiano, tenho com este ilustre semiólogo muitos pontos em comum, a começar por uma linguagem que, mesmo ensaística, ou, se preferirem, científica, incorpora o poético.

Assim, falo, penso e escrevo porque um dia alguém inventou a poesia. Aliás, biografismos pessoais à parte, uma ressalva: vivo poesia e vivo porque a possibilidade da poesia existe e resiste a cada dia.

Mas para que a poesia existisse foi preciso que antes de mais nada existisse a língua. A língua, esta intrusa imprescindível, que nos obriga a dizer o que não queremos dizer — conforme protesta Barthes, indo ao exagero de chamá-la, por isto, de fascista — é mesmo um meio necessário, mas bastante complicadinho. Não vou me alongar nesta lenga-lenga, mas pra evidenciar a complexidade da língua, basta lembrar que sempre estamos nos explicando de novo, repetindo falas, usando aquelas expressões abomináveis como ou seja, isto é, quer dizer etc. e tal.

Certo, a língua tem seus limites e eles nos cerceiam. Quantas vezes calamos a boca, ou melhor, a língua, para poder nos comunicar melhor?

A língua tem limites rígidos, pré-estabelecidos, limites impostos, etc. Mas a língua não é um corpo morto. Pelo contrário: enquanto mecanismo dinâmico, realimenta-se de novos termos, novas regências, novos complementos, o tempo todo.

Pois nesse vaivém da língua, subindo e descendo, errando atrás, na frente, em cima, em baixo, entre, etc., ela dá origem à literatura. E quem disse que esta lhe é superior? Ãh?... quem disse?

A língua dá origem à literatura. E agora peço licença ao Barthes para discordar dele e dizer: língua e literatura são dois bicudos que se beijam sim. Aliás, vivem se beijando. Ou melhor: para viverem, alimentam-se destes beijos cordatos ou escandalosos, consentidos ou roubados. Mas, beijos.

Sempre há entre língua e literatura uma história de beijos. E como em quase todo casal, um é mais rígido e o outro, mais flexível.

A língua, no caso, é a parte rígida, durona: tem sua normatividade e não abre mão dela. Afinal, a língua reza por esta cartilha. A literatura, ao contrário, é anárquica e nem reza: só quer ter prazer, só quer gozar. Ou seja: quer sabor.

A propósito de beijos, Catulo, um dos maiores poetas líricos do mundo ocidental em todos os tempos, escreve em O cancioneiro de Lésbia: "Vivamos, minha Lésbia, e amemos, / E todas as censuras desses velhos tão severos, / Valham para nós um só centavo. (....)/ Dá-me mil beijos, depois cem,/ Então mil outros, então outros cem,/ Depois, sem parar, outros mil, depois cem./ Então, quando somarmos muitos milhares,/ Misturaremos todos, para não sabermos,/ Ou para que nenhum invejoso possa pôr mau-olhado / Ao saber quantos foram os beijos dados".

Beijos e abraços sem ter fim. Som de 50 anos de bossa nova, poesia para todas as bossas, para todas as épocas. Para todos.

Mas para a literatura viver toda esta admirável libertinagem criativa e procriativa ela necessita da língua. Melhor: ela necessita de que a língua exista enquanto normatividade. Sem as normas da língua, sem o referencial mínimo para se estabelecer uma função comunicativa, que a língua dá, fica impossível a libertinagem, a anarquia. Afinal, a literatura precisa do freio que a gramática impõe. Se não há este limite, a literatura vai romper o quê?

Quando se diz que um poeta inova, por exemplo, na construção de uma figura (um ícone, um significante, etc.) ele pode estar criando uma nova imagem a partir da transgressão da semântica, da sintaxe, da fonologia, por exemplo.

E é claro que transgredir dá um prazer danado. Fica aquele gostinho de deixar pra trás o que todo mundo faz. A sensação do novo, do original, do diferente, da irreverência, da unicidade é muito prazerosa. Os amantes sabem disto: vivem se perguntando: eu sou mesmo o único em sua vida? É só a mim mesmo que você ama? E outras bobagenzinhas (e bobagenzonas) que só têm vez na cumplicidade absoluta e privada da vida do casal. Viva a língua. Salve, salve, literatura.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

Publicado, originariamente, em duas partes: nos dias 31/08 e 05/09 de 2008, no 2º Caderno do Jornal A União, de João Pessoa.

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