segunda-feira, 14 de dezembro de 2015

Sombras da influência estrangeira no Brasil



por Ailton Jesus

Francisco de Goya era pintor e gravador espanhol. Vivenciou um período obscuro da Espanha, no início do século XIX, assombrado pela inquisição e pelas guerras napoleônicas. Suas obras expressivas, que o fizeram ser considerado por muitos o “Shakespeare do pincel”, traziam reflexos desse período: o sofrimento humano, o desespero, deuses e demônios. Essas obras são hoje símbolos das atrocidades dessa época, como retratado no filme Sombras de Goya (Goya’s Ghosts, Milo Forman, 2006), assim como outros elementos culturais se tornam símbolos de seu tempo. Um exemplo disso é a cultura pop estadunidense, feita símbolo da sociedade americana contemporânea.

O filme Boyhood foi lançado em 2014, mas sua produção começou 12 anos antes, com a intenção de acompanhar claramente o desenvolvimento dos personagens. É preciso reconhecer a ousadia dessa intifada cinematográfica e o sucesso alcançado.  Pelo enredo que acompanha o jovem Mason (Ellar Coltrane) da infância ao início da vida adulta, em seus lares conturbados e pela própria iniciativa de se gravar um filme em um período tão longo, Boyhood evidencia sua dependência com o tempo.

Ao assisti-lo, gostaria de ter me chocado mais com a violência perpetrada pelos companheiros da mãe de Mason — por meio de abusos verbais e físicos, acompanhados pelo alcoolismo —, mas me choquei com algo muito mais sutil. O diretor e roteirista, Richard Linklater, busca usar elementos e referências culturais ao longo do filme, além do óbvio envelhecimento dos personagens, para que o espectador perceba não apenas a passagem do tempo, mas se localize temporalmente em meio a esses acontecimentos. Tais elementos funcionam como ganchos, fisgando no fundo da nossa mente memórias que nos remetem ao nosso cotidiano, paralelo ao do jovem Mason. O tempo flui, leva consigo os personagens, guiando-os por meio de elementos culturais norte-americanos, e foi isso que me chamou a atenção: o quanto eu me identificava com esses elementos.

Os ganchos usados são referências culturais. É preciso que a família em questão seja uma “família americana” e seja rodeada pela “cultura americana” em cada pedaço de suas vidas. Além de trazer verossimilhança para o filme, para cada referência cultural, o enredo é levado para dentro de um contexto histórico dos Estados Unidos e, assim, a época não precisa ser mencionada, pois aqueles familiarizados com esses elementos são capazes de identificar esse período.

Estranho é saber que eu, enquanto brasileiro, consigo mesmo assim captar todas essas referências. Mesmo aquelas que eu não conheço de verdade, por assim dizer, traziam lembranças vivas e eu sabia exatamente como estava minha vida nessa época, quem eram meus amigos e em que série da escola eu estava. Nunca assisti High School Musical, mas identifiquei uma de suas músicas sendo cantada no filme, assim como nunca fui fã da cantora Lady Gaga, mas lembro do momento em que me mostraram o mesmo clipe visto pela Samantha (Lorelei Linklater), irmã mais velha de Mason.

Há de se ressaltar, porém, uma proximidade entre a minha idade e a de Mason, o que pode explicar a existência de certas referências em comum durante nosso crescimento. Contudo, ao meu ver, isso não apaga o fato de termos crescido em países diferentes.

Estranho também é perceber a força que essas referências externas têm sobre a nossa vida, o quanto elas estão presentes e marcadas em nossa mente, esperando para serem acordadas. Entretanto não consigo me lembrar bem do cenário musical e cinematográfico do Brasil na época. Será que se eu assistisse hoje um filme nacional, com referências nacionais, essas lembranças teriam sido fisgadas também?

Não está claro para mim se essa identificação com os elementos culturais de Boyhood é algo bom ou ruim. Mas não posso negar a existência de uma desproporcionalidade na absorção de informação da cultura norte-americana pelos brasileiros, sendo que o contrário não ocorre de forma tão clara. Essa marca cultural atua como sombra sobre nós, é marca temporal norte-americana e, de sobra, nossa. Ela se torna moldura do nosso cotidiano ao mesmo tempo em que obscurece, em partes, a cultura brasileira. Contudo, não parece justo falar aqui apenas de nós brasileiros, pois essa influência dos Estados Unidos se dá mundialmente.

Devo dizer também que fiquei ainda mais confuso ao ler as letrinhas que sobem no final do filme e que pouca gente dá atenção. Permaneci atento enquanto passavam os créditos e me deparei com as informações da trilha sonora do filme, que conta com 53 músicas, das quais cinco de compositores ou intérpretes brasileiros, incluindo Luísa Maita e Moreno Veloso. Não conhecia nenhuma dessas músicas, nunca ouvi falar desses artistas nem muito menos fui capaz de identificá-las no filme.

Fico triste por ser atingido na cara com meu distanciamento da cultura brasileira, mas ao mesmo tempo fico feliz por saber que elementos culturais nossos também foram usados num filme sobre a vida de um jovem estadunidense.
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Ailton Jesus é estudante de Engenharia de Materiais. Por obra do destino também é ator, quando sobra tempo, músico, e usa o cinema como ferramenta de autoconhecimento.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 24, de setembro de 2015), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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