terça-feira, 22 de dezembro de 2015
Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Jiní
por Harlon Homem de Lacerda
Ainda no espírito de Simone “Então é natal”... tratemos de mais um texto do Corpo de Baile.
“A estória de Lélio e Lina” é um conto de fadas desses que a gente suspira, transpira, respira fundo e vai até o fim encantando-se com o sertão rosiano. Alguém pode querer tentar dizer que na literatura de Rosa só tem isso, que os personagens são mais do mesmo, desse sertão. Mas aí é que se enganam. A cada página vamos invadindo a vida dessas personagens, que não é bem uma vida, mas é algo muito parecido, e encontramos tipos totalmente novos. A fortuna crítica rosiana falou muito de Lélio, falou muito de Rosalina (até havendo quem dissesse que Rosalina era um alter ego feminino Guimarães Rosa), falou muito de Seu Senclér, falou muito de Jiní, mas não falou de Jiní como nós queremos falar dessa princesa fabulosa, que sai de uma condição de marginalidade total para, através de sua própria força, tornar-se princesa de um conto de fadas sertanejo. A atmosfera mágica desse conto, já dada pelo cachorro de Rosalina que Lélio “traz de volta” sem querer, sem saber que se tratava de uma “caçada”, é recontada por Jiní em sua trajetória. Tratemos de segui-la:
“Jiní: uma das mais maravilhas...” no tom de Canuto;
“Nem por seu irmão ser branco e a Jiní tão escura de pele. Mas porque a Jiní não dava certeza de ser honesta” no tom de Drelina;
“A Jiní estava na porta. A gente ia vendo, e levava um choque. Era nova, muito firme, uma mulata cor de violeta. A boca vivia um riso mordido, aqueles dentes que de brancos aumentavam. Aí os olhos, enormes, verdes, verdes que manchavam a gente de verde, que pediam o orvalho” no tom da vista de Lélio.
A descrição continua, chega aos proibidos de Jiní. Jiní que aguentava a cara feia de Tomé, que aguentava, aguentava aquela gente toda. Até que Jiní não aguentou mais e foi embora, com fazendeiro que lhe dera tudo. Ela usou o corpo. Usou os olhos verdes e toda a voluptuosidade que deixa os homens e mulheres cegos. Ela usou todas as armas de que dispunha para sair da marginalidade, da opressão, da condição desumana a qual o próprio narrador a colocava ao descrever suas relações com Lélio, que eram sem palavras, apenas desejo e carne – animalescas.
Muito parecido com o tom do narrador de São Marcos, o tom do narrador com Jiní estabelece uma condição de construção da personagem negra na ficção rosiana que demonstra um tom depreciativo para com ela. Nesse conto de fadas, nesses contos de ficção, a dureza da realidade ricocheteia, rechicoteia nas costas do negro que se vê representado por suas características físicas sendo o prenúncio do pecado e da perdição do branco. Não fujamos, portanto dessa discussão, que tem na princesa Jiní e em outros personagens da ficção rosiana uma página que desnuda o sertão rosiano e o sertão real como palco de atrocidades para com o povo negro. Que luta e muda, mas que precisa de muito luto ainda para deixar sua voz ser escutada.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.
Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa – Cara-de-bronze: ‘Duas coisas’
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Conta quem conta
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – O vaqueiro minino
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – A criança paradigma
- Dossiê João Guimarães Rosa – Seguindo a travessia
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Ruminando
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Corpo Fechado
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Toda crença tem seu santo
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Minha Gente
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Marcha estradeira
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