terça-feira, 29 de dezembro de 2015

O outro lado selvagem



“Eu me sinto um estrangeiro, passageiro de algum trem”
(Engenheiros do Hawaii)

por Erick Linhares

Cenas fortes para a sociedade acomodada. As leis e parâmetros contemporâneos não preparam racionalmente as pessoas a tolerarem a diversidade. Filmes como Lado selvagem (Wild side, 2004, Dir.: Sébastien Lifshitz) vêm como uma bomba para esses parâmetros, assim como reforçam uma luta social pelo direito de ser livre perante os desejos, chacoalhando as resistências criadas numa sociedade rígida, que quer se organizar de maneira sistemática com intenção de que não haja abertura para surpresas, para o novo, não caminhando para a criação. A criação talvez seja a fluidez do ser humano, em sua vivência natural, em sua vivência mais selvagem.

Para que se crie, para que apareça o novo, precisa-se destruir, não aniquilar, daí começar uma reconstrução surpreendente de leis e costumes. Pierre inicia esse processo a partir de quando se mostra para sua mãe como um travesti, assumindo o papel de seu desejo para sua progenitora, ele também começa sua luta política para uma melhor aceitação social, onde agora impõe que Pierre é passado, a sua nova criação surpreendente é Stéphanie.

Sobre o que essa criação trouxe de novo, há várias questões que poderiam ser abordadas. Mas uma que me chega mais evidente e mais forte é o amor. A mãe de Stéphanie apenas se sente aliviada que seu marido não tenha visto seu filho se tornar um travesti. Mas isso me parece mais uma desculpa para lutar contra suas leis morais que a impelem a pensar que aquilo é errado. Contudo, prestes a morrer, ela escolhe o amor para com Stéphanie, mostrando seu lado selvagem em detrimento das leis introjetivas que provavelmente afastariam mãe e filho.

O amor se estende e Stéphanie é feliz com seus namorados Mikhail e Djamel. Cada um dos três tem uma personalidade irreverente e são estrangeiros, tanto no que se trata de vir de outro país, quanto à selvageria de não se reconhecerem nos parâmetros sociais que não são abertos à esse amor diversificado que os três vivem verdadeiramente.

Sustentar essa selvageria, sustentar ser estrangeiro é uma atitude pesada para as emoções, uma luta consigo mesmo contra os moralismos introjetados de sua sociedade, uma luta política para se ter espaço e que a própria comunidade abra caminhos para criação. A dor é bem representada nas primeiras cenas quando Stéphanie chora enquanto um personagem canta uma música sobre paixão e morte, sobre como é difícil sustentar o que se é. Na cena final, os estrangeiros representam bem também sua dor na saudade que uma viagem sempre deixa, e ao mesmo tempo, a paz que é ter o amor companheiro, que se entende, que se reconhece, estrangeiros de algum trem que parece nem ter passado...
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Erick Linhares é formado em Psicologia pela Faculdade Leão Sampaio, onde foi coordenador geral do Centro Acadêmico do curso. Atualmente é bolsista na Especialização em Gestalt Terapia.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 24, de setembro de 2015), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

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