quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Onze duodécimos. Parte. Retornaremos.

por Amador Ribeiro Neto

Continuando a comentar livros semifinalistas do Prêmio Oceanos 2015.

Horácio Costa (São Paulo, 1954), com 11/12 Onze duodécimos (São Paulo: Lumme Editor, 2014),  continua deixando de lado o estilo neobarroco que caracterizou longa fase de sua produção poética. No ano passado ele foi vencedor do Jabuti com Bernini, um livro que já explorava o coloquial. Agora, retoma este viés, com a mesma perspicácia. O resultado: um livro elaborado, mas que jamais revela seus andaimes. A naturalidade dos poemas faz crer que foram escritos ao correr da pena. Ledo engano. Horácio Costa herdou do Neobarroco o grande domínio da expressão vocabular. A palavra, para ele, é admirável embate entre o que (res)soa  e o que diz. Busca e atinge o poético realizando o grande sonho de Jakobson e Valéry: o vocábulo como um todo de som e sentido. Um todo que se bate. Rebate. Reverbera. Prolifera. Quem ganha é a poesia, que sabe ser coloquial, sem desfazer-se do rigor de sua linguagem.

Cito parte de “Ouro e aço”: “tínhamos de escolher uma aliança / a de casamento: / homens que vão comprometer-se / também escolhem alianças se quiserem / / e posto que na sociedade brasileira / onde tudo quer se deixar à mostra / (herança da monarquia?) / não basta a lei que passou / pelo STF e foi criticada / pelas igrejas cujos deuses / sempre são solteiros / então / seja: / / os vendedores da H Stern” e segue o poema em deliciosa narrativa-reflexão sem perder a leveza da poesia-diamante.

Mas o poeta nos dá um requintado soneto alexandrino, que também pode ter versos convertidos em decassílabos, numa reversão da forma semelhante ao tema. Cito a quadra inicial de “O pequeno dragão azul”: “Que faria eu sem o pontual auxílio / Do pequeno dragão azul que me assiste / A cada invasão do vento frigidíssimo: / Hoje, quando muda do tempo a densidade?”. Horácio é um poeta que conhece os caminhos da poesia-gema-rigor. Ela flui em suas mãos de mestre.

Adriana Lisboa (Rio de Janeiro, 1975), com Parte da paisagem (São Paulo: Iluminuras, 2014), sabe apropriar-se da mais óbvia observação sobre o mundo, exprimindo-a de modo leve e encantador. Sua poesia é a mais pura lírica. Rigorosamente anotada em versos que nos imantam. Lê-se seu livro emotiva e intelectualmente, numa só apreensão. Tudo é belo e inteligente. O leitor desperta em pensamentos e suspiros. Nada novo nos referentes. Tudo novo em sua poesia. Escrita, mas que é também uma  poesia para ser falada, tal a carga de musicalidade que encerra. Em tempo: não a música fabricada para apresentações. Mas a música presente na fala. E que mora no centro das canções populares. Por isto ela toca: Chico e Caetano juntos a Pessoa e Drummond. E, no entanto, Adriana Lisboa não é nenhum dos quatro. Ela é só ela mesma. Vejamos: “Quatro da manhã”: “Isso que sou / ou penso ser / ou gostaria de ser / não chega aos pés / do canto com que o pássaro / ensaia a manhã / intuindo o sol / sem um vestígio de metafísica / e sem o peso de chumbo / das minhas esperanças”. Ou “Lavar a alma”: “A alma precisa ser lavada à mão. / Não que seja de pano delicado, / nem que sangre tinta. Ao contrário, / a alma é bruta, e se não for lavada à mão / a tarefa não fica bem feita. Apanhe/”. E conclui: “Lavada assim, / a alma pode ser usada / ainda por muitos anos, / uniforme ideal a esta escola / de obstinação que é o corpo, / que é o mundo”. Aqui Whitman se intromete. Entre tantos outros, livro afora. Mas tudo muito cool. Tudo, acima de tudo, Adriana Lisboa.

Marcelo Ariel (Santos, 1968), com Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio (São Paulo: Patuá, 2014), é  apresentado por Cláudio Willer, no prefácio, como um “dos mais inventivos e intelectualmente estimulantes dentre os novos poetas brasileiros”. E Antônio Cabrita, no posfácio, depois de afirmar que o poeta faz uso de inúmeras referências, anuncia: “Ariel montou citações & flashes (que) reorganizam os sentidos em novas constelações”. De fato, ambos têm razão num ponto: o livro é um puzzle de poetas, cineastas, pintores, prosadores, etc., quase ad infinitum. E Ariel sai-se bem quando sua voz particular não fica a serviço de possíveis interações que ficam gratuitamente a cargo do leitor. Digo, ele se vale, em excesso, das referências. E nem sempre sabe tirar proveito poético delas. É imprescindível que Marcelo Ariel tenha dicção própria. Ele sai-se bem em passagens como “A flor do altíssimo / se escondeu na luz / dos teus olhos / que eles no terror / do dia / entoem o hino silencioso / que na madrugada / floresçam / em sonho / no teu jardim de perguntas” em “Do grão do salmo”.

Mas erra a mão nos poemas em prosa, quase sempre prosaicos. Ou quando aventura-se numa mistura de filosofia e religiosidade. Ariel tem a pegada da poesia. Não é tudo que Willer e Cabrita dizem. Precisa enxugar seu livro, que é desigual. Sob a faca do rigor, Retornaremos... será outro. Será um bom livro.
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 23 de outubro de 2015, p. B-7.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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