terça-feira, 31 de março de 2020

Dona Ciça do Barro Cru em texto do livro ‘Cultura Insubmissa’, de Rosemberg Cariry e Oswald Barroso



Apresentamos texto publicado no livro Cultura Insubmissa (estudos e reportagens), de Rosemberg Cariry e Oswald Barroso (Fortaleza, Secretaria de Cultura e Desporto, 1982), sobre a artista Dona Ciça do Barro Cru, um dos grandes nomes da história do artesanato de Juazeiro do Norte, no Cariri cearense. Obs.: optamos por reproduzir o texto ipsis litteris, repetindo a maneira como foi transcrita a fala da personagem em questão.


Dona Ciça - Mãe de Barro

A cerâmica lúdico-figurativa é uma das mais significativas expressões da arte popular do Nordeste. Se os brinquedos de barro eram comuns às tradições culturais dos povos europeus e nos foram legados pelos ibéricos, receberiam também a contribuição indígena que enriqueceria em muito a cerâmica nordestina em seus multiaspectos. No Ceará, principalmente no Cariri, a contribuição índia foi marcante, mas em outras regiões do Nordeste os povos negros transplantados deram também o seu importante legado cultural no desenvolvimento da cerâmica popular. Ofício de mulheres, as cunhãs, sensíveis e habilidosas no trato com o barro, modelavam, juntamente com os potes, panelas, etc., pequenas figuras antropomorfas e zoomorfas para as crianças brincarem. Os nossos artistas populares, na grande maioria caboclos, partindo de modelos herdados das tradições ibéricas e indígenas, desenvolveriam uma cerâmica tão rica e esteticamente cheia de significados culturais que se poderia compará-la à cerâmica asteca e andina, no seu estágio mais avançado.

No livro As Artes Plásticas no Brasil, Cecília Meireles fala sobre a cerâmica utilitária da Bahia: “Diante de certas peças cerâmicas (...), tão elegantes de perfil e tão ricas de decoração, pensa-se nos suntuosos modelos mexicanos e peruanos e tem-se a impressão de que a alta cerâmica do pacífico estendeu até o atlântico os derradeiros filamentos das suas raízes”. No Ceará, na cidade de Cascavel, nas regiões da serra da Ibiapaba e do Cariri, encontramos núcleos de intensa produção de cerâmica utilitária e lúdica. Destes núcleos, o mais importante é o do Cariri, onde os artistas populares passaram, assim como os artistas de Caruaru - Pernambuco, de figuras isoladas para complexos conjuntos de peças representando cenas cotidianas e manifestações folclóricas regionais. Em Juazeiro do Norte existe uma cerâmica de rara beleza, com formas bem delineadas, muito equilíbrio e intenso colorido. Nomes como Cícera Fonseca, Luíza dos Cachimbos, Carminha e Dona Ciça do Barro Cru são as expressões maiores de cerâmica lúdico-figurativa do Cariri. De Dona Ciça nos ocuparemos neste pequeno estudo, por sua importância artística de características diferenciadas.

A arte de Dona Ciça reflete a realidade e a cosmovisão populares. As cenas encontradas no cotidiano do povo simples são por ela plastificadas em formas bem elaboradas e detalhadas, com um colorido supra-real. Sua produção inclui peças individuais: aves, animais domésticos e fantásticos, pessoas em seus afazeres, santos e demônios etc. Sua cerâmica, no entanto, encontra maior expressividade nas obras de conjunto, onde reelabora, segundo a sua visão e sensibilidade estética, cenas coletivas de imensa complexidade. Exemplos disto são os conjuntos de peças que compõem os os “reisados”, “farinhadas”, “bandas de pife”, “enterros de anjos”, “procissões” etc. Na reelaboração do real, Dona Ciça não usa apenas o barro e as tintas como matérias-primas. Utiliza-se também de palitos, arames, sementes, algodão, fitas, retalhos de fazenda e penas (o uso de penas ficou-lhe como legado índio, onde deita suas origens).

Para melhor compreender esta grande artista, necessário se faz que mergulhemos na sua história. Fala Ciça: “Nasci no Sítio São José, Juazeiro, em março de 1915 (ano de tirana seca). Meu pai era de Garanhuns e se chamava Pedro Araújo, minha mãe era de Quipapá e se chamava Quitéria Maria da Conceição. Fui pra Santana do Cariri novinha, quando vim de lá pro Juazeiro tava com sete anos. Em 32 foi seca, muito aflagelado aí no Buriti, eu tirei a temporada pedindo esmola no Crato, mode sustentar pai e mãe. Ninguém tinha nada pra comer em casa, eu ia com uma irmãzinha, montada num jumento, com um jogo de caçuá. Neste tempo morreu umas irmãs novas que eu tinha. A gente cumia muita comida braba, coisa venenosa, só pudia ser. Depois eu fui vivê de vendê capim. Comecei a trabaiá no barro com 25 anos de idade já tava casada pela primeira vez com Luís Ferreira, que morreu de congestão. Quando eu casei já tinha Ciço, esse que é casado. Ciço foi um erro que eu dei, eu sô uma pessoa que só fala a verdade, nem que morra. Ficando viúva eu me casei com Manuel Costinho de Sena que morreu de saluço, sofrendo dezoito dia de saluço, dez anos depois de nóis casado. O outro, Cornelho, não morreu comigo, morreu lá com a famia dele. O danado vivia dizendo que tinha um probrema, sei que esse probrema num tava certo pra gente casado, mandei ele lá pra famia dele, tava separada dele nesse tempo. Adepois me casei com Manuel num sei o que de Mato, esse também mandei embora, morreu cum a famia dele, pra lá. Agora casei cum Jenuaro”. Assim é Ciça, com toda a sua riqueza existencial e expansiva sinceridade.

Vivendo pobremente, numa casinha de taipa no subúrbio de Juazeiro, Ciça subvive da sua arte e dos restos de legumes que cata nos dias de feira. Ela afirma: “o dinheiro que apuro não dá nem pra cumê, eu vou pra feira do Crato e de Barbaia e fico varrendo na feira do feijão, chego em casa e vô separá os caroço de feijão. Eu só varro na feira do Crato e de Barbaia, no Juazeiro eu nunca faço lá, eu nunca me acustumei. Sou conhecida lá, moro lá desde os sete anos, aí tenho vergonha de pedir esmola e varrê na feira de Juazeiro. Só como disso, eu também peço nas budegas e nos cafés, peço a um e a outro. Tiro um conto, dois conto, assim vou vivendo. Só o trabaio no barro num dá e roubá eu num vou. As muié nova pede, quanto mais eu qui já tô véia e duente. Agora eu quero falar pra eu miorá mais a vida. O trabaio do barro quando vou pegá, fico com as mão drumente, aquele drumiço nas mãos. Fico bastante duente, só quiria que arrumassem um negoço pra mim. Minha casa é muito pobrezinha, quero ajeitar e num posso, é muito apertadinha, só tem um vão, ainda essa sumana levei uma queda dentro de casa, num reguinho que tem dentro de casa, o esgoto passa por dentro de casa e eu num posso fazer, num tem tijolo, num tem nada. Jenuaro trabaia butando umas rocinhas de meio, mas num dá pra nada, não. Minha vida é muito precária. A gente leva os buneco pra feira e o povo num compra, só quer baratinho e num posso vender. Outra é que tem muita gente ignorante, a gente pede um preço ele ignora, querem de graça e eu num posso dar, material caro, dá muito trabaio, eu já trabaio a força, vivo sem paciência pra arte, tô véia”.

O fenômeno da diminuição da venda de cerâmica lúdico-figurativa explica-se pela queda do poder aquisitivo do povo. A ceramista abandona a feira e passa a viver das raras encomendas dos turistas ou explorada por atravessadores. Esta prática passa também a intervir na originalidade das peças produzidas pelo artista popular, que deixa de acionar os mecanismos internos, dinâmicos, coletivos, vivos e integrados ao seu espaço (região) e às suas necessidades sociopolítico-econômicas, passando a produzir uma arte que é apenas um reflexo da cultura capitalista dominante. A partir desse processo de dominação deixa de ser feita para o povo, desintegram-se as suas funções sociais e ela passa a ser consumida pela classe dominante, ficando, consequentemente, de difícil alcance para a bolsa popular. A cerâmica lúdico-figurativa, que deixa de ser vendida nas feiras a preços populares, depois de passar por um processo de descaracterização, torna-se objeto caro nas butiques grã-finas e adornos nas casas luxuosas. A classe produtora desta arte tem que se conformar com os bonecos de plástico, bibelôs de louças ou estatuazinhas de gesso reproduzindo em série cenas do cotidiano burguês. O povo, mesmo produzindo, fica sem acesso à sua própria arte. Dona Ciça, mantendo-se fiel a sua arte popular, resiste como pode.

O trabalho com cerâmica envolve uma série de dificuldades. Ciça explica: “O barro eu vou buscar nas Cobras, num boto de carrada não, eu vou buscar na cabeça. É muito longe de minha casa, perto da Serra do Horto, quase meia légua. Tenho que comprar tinta, tinta de casa, tinta d'água, misturada com cola de madeira. Os pinceus eu faço de palito e algodão, só uso as mão e os palito. Teve um tempo que eu viajava, com o meu primeiro marido, fazendo boneco de barro, pra trocar por comida cum os minino e pra vender na feira. Viajava pra Cedro, pra Iguatu, andei até pela Paraíba... tempo bom. Eu faço de tudo na minha arte, faço reisado, cobra, muié fazendo renda, muié catando piolho, muié dando de mamar, banda de pife, padre confessando, João Tingó, Maria Fumaça, casamento, batizado, violeiro, operação, anjo, diabo, cangaceiro, santo, gato, capote, tenho tudo na minha cabeça, é tudo na minha maginação”. Interrogada por que não cozinhava seus bonecos, fala com simplicidade: “Num dá pra cunzinhar, minha arte é deferente, leva pena, leva cordão, leva simente, leva muita coisa. Se eu for cunzinhar queima tudo. E eu também num sei cunzinhar não, aquilo precisa outra preparação. Eu só sei fazê, butá no sol, pintá e pronto. Cada pessoa tem sua arte”.

Por não cozinhar em forno suas peças (daí o nome Dona Ciça do Barro Cru), elas são fragilíssimas, quebram-se ao menor impacto ou com o tempo se desfazem, voltando novamente à massa amorfa do barro bruto. Pessoas interessadas na comercialização da sua arte, ou mesmo pensando em conservá-las, tentaram convencer Ciça de queimar as suas peças. Já houve mesmo quem quisesse doar-lhe um forno. Ciça resiste, continua não cozinhando seus bonecos, deixa-os belos e frágeis, enfeitados com fitas, cordões e penas, destinados à breve existência, ao desaparecimento.

Assim como a sua arte, é a sua criadora, bela e frágil, na sua fascinante criatividade, que também desaparecerá, miseravelmente, catando legumes e pedindo esmolas nas feiras. Tanto é o amor que suas mãos maravilhosas transmitem aos seus “bichinhos de barro” que, ante a  impossibilidade do sopro da vida, Ciça lhe cria, com toda liberdade de expressão existencial/estética, uma vida onírica, poética, fantasiosa, deitando raízes no seu cotidiano e no mundo que a cerca. Batiza suas criações com nomes engraçados, conversa com elas, canta canções de ninar... Cada boneco ou bichinho de barro criado por Ciça tem um passado, um presente e um futuro. Quebra-se a barreira da lógica formal, brilha o relacionamento mágico do homem com a natureza. Os bonequinhos parecem adquirir vibrações próprias, vibrações quase palpáveis para as pessoas sensíveis, vibrações que irradiam a beleza de Ciça – mãe de Barro, criança travessa com suas dezenas de anos escanchadas na cacunda. As suas “festas de casamento” ou, como ela gosta de dizer, “inauguração da minha arte” é um momento de rara beleza, onde o sonho e o real se irmanam. “Eu faço os bonecos, são quatro noivado, dois em pé pra se casá, dois sentado pra sair da mesa. Primeiro fica uma pessoa falando pelos boneco do mesmo jeito de uma pessoa que fala quando vai se casá, a pessoa diz as coisas com os noivados. Aparece um vinhozim e compro uma galinha. Depois do casamento sento os boneco na mesa e boto cumida pra eles, também pro padre, pro sacristão. Boto cumida e vinho pras visitas”.

Durante todo o ano Ciça se prepara, faz economias, mesmo tendo que passar fome mais do que já passa, para comprar uma galinha e um litro de vinho de jurubeba. No dia da festa, Ciça prepara a galinha, põe o vinho de jurubeba na mesinha de toalha branca feita de saco de açúcar e acende as velas. Um ritual sagrado/profano. Para a arte de Ciça e seu relacionamento com esta arte, vale a análise de Paul Ahyi, sobre a arte produzida pelos povos de tecnologias simples: “(...) dissocia e associa os elementos naturais segundo as suas próprias leis, é porque tenta eternizar e realçar, no ser vivo, o permanente e não o acidental, a essência e não a aparência, o constante e não o efêmero. Seu objetivo, de certo modo, é mostrar a realidade do ser vivo e não a sua imagem externa”.

A memória cultural nordestina guardará o nome desta artista do povo? Possivelmente sim, a sua arte não será de todo esquecida. Ficará a sua voz suave conversando com os seus “bonequinhos de barro”, ficarão os gestos das suas mãos calosas no duro ofício do barro, ficarão seus depoimentos de dor e esperança, ficará o seu sorriso forte, gravados na película do filme Dona Ciça do Barro Cru, realizado pelo cineasta cearense Jefferson de Albuquerque Jr., que denuncia a pobreza de Dona Ciça e resgata para o futuro a grandeza e a criatividade desta artista popular que faz da sua arte e da sua vida a expressão dos sonhos e das dores deste povo nordestinado.
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Texto originalmente publicado no Jornal O POVO - Fortaleza-CE – 16 de maio de 1982.
Fotos: Ricardo Tilkian.

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