sábado, 14 de julho de 2018

Minha vida com Bergman



por Elvis Pinheiro

Lembro-me nos anos 90, em Recife, a primeira vez que vi uma lista dos dez mais importantes filmes do século. O cinema havia recentemente completado cem anos e listas do tipo arranjaram a sua melhor fase e razão de ser. Entre os dez filmes de todos os críticos e diretores e cinéfilos não podia faltar Cidadão Kane de Orson Welles e Morangos Silvestres de Ingmar Bergman. Este nome sempre teve aroma e sabor para mim. Não sabia nada a respeito da sua história, apenas intuía o que ele pudesse significar. Ficava imaginando quando iria vê-lo. Era época das locadoras de VHS e em nenhuma das que havia próximo de casa eu encontrava o filme do Bergman.

Para encurtar a história, em Recife há na rua da Aurora um imponente Cinema São Luís e nas noites de segunda-feira se exibiam os filmes de arte em sua última sessão. E foi lá, numa daquelas noites recifenses, exatamente no São Luís que descobri porque Morangos Silvestres era uma obra-prima. Filme imorredouro. Em qualquer época assistiremo-lo e vamos rir, sofrer, ter medo do futuro e do passado, recordar nossos amores, a nossa juventude, os nossos erros. Sempre abismados com o casal cheio de ódio e rancor, sempre maravilhados com a postura da nora ao volante expulsando-os, sentindo pena e aceitando o fato que ninguém pode mudar muita coisa de uma vida predestinada, de uma herança tão cruel. O gosto e o aroma só se reforçaram.

Bergman é um filósofo que nos lança perguntas o tempo todo sem respostas. Onde vi os demais? Cada qual teve sua hora. No Cinema da Fundação Joaquim Nabuco, no Derby, ainda Recife, tive o impacto emocional de Sonata de Outono. Aquela conversa entre mãe e filha me sufocou, me horrorizou e sempre imaginei conversas longas e demoradas com entes amados onde tudo pudesse ser jogado sobre o outro, todas as mágoas, todas as frustrações causadas, todo o sofrimento impetrado! E no outro dia, o resgate sóbrio da normalidade, a busca pelo equilíbrio momentaneamente perdido. Tudo tão verdadeiro. Eu já tinha assistido as homenagens ao filme do mestre: De Salto Alto de Almodóvar e Setembro de Woody Allen. Amava os dois filmes e são obras íntegras, homenagens bem feitas, porque não roubaram ao homenageado a sua potência, o seu poder.

Fui aos poucos reconhecendo algumas características. Atores recorrentes. A fonte utilizada para escrever os créditos. Liv Ullmann: musa e parceira. Tão diferente em cada filme e tão senhora ao saborear cada palavra escrita por Bergman. O silêncio, o olhar e a entonação certa, precisa em cada cena. A leviana de Gritos e Sussurros, a reprimida de Sonata de Outono, a enigmática de Persona. A mulher madura de Saraband. Descobri e só tenho acesso a Liv Ullmann através de Ingmar Bergman.

De cinéfilo apaixonado a exibidor entusiasta. Adoro ter filmes dele que ainda não vi. Sempre haverá espaço para um novo assombro do centenário Mestre. Em junho exibi no Cine Café do CCBNB Cariri de Juazeiro do Norte, A Hora do Lobo. E li um comentário “to impactado com a hora do lobo até hoje. nunca superei”. Foi o Vinicius Gomes quem me disse isso exatamente hoje, 14 de julho de 2018, quando Bergman completaria 100 anos. Sim, ele continua e continuará sendo uma ótima razão para se ir ao cinema.

No meu ofício, ora estudo, ora revejo, ora comento ou analiso um filme. Passá-lo adiante é uma missão saborosa. O crítico não atrapalha o amante. Meu desejo só aumenta quanto mais vejo Bergman. Sou mais cinema e mais Elvis Pinheiro por conta de suas criações. O terror que senti com Fanny e Alexander, o empoderamento e o senso de liberdade que ganhei com Monika e o Desejo. O exercício da metalinguagem em Persona, em A Hora do Lobo. Não é só a Queda da Bastilha que mudou o mundo num 14 de julho. Quando penso nos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, magistralmente trabalhados por outro gênio criador que tanto sinto afinado com Bergman, Krzysztof Kieslovski, penso que toda a obra do gênio sueco refletia sobre os mesmos três elementos. Nessa hora, ainda acrescento a generosidade de quem permitiu a Tarkovski filmar O Sacrifício, para depois invejá-lo. Quando se faz Arte, ela se multiplica de modo a criar mais e mais beleza e estupor! Vejamos por mais cem anos, Ingmar Bergman! Viva! Salve!

Elvis Pinheiro
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Texto escrito no dia 14 de julho de 2018, no dia do centenário de nascimento Ingmar Bergman (nasceu em Uppsala, Suécia, no dia 14 de julho de 1918).

Elvis Pinheiro é editor da Revista Sétima e professor. Desde 2003 é Mediador de Cinema no Cariri cearense.

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