sexta-feira, 29 de dezembro de 2017

O absurdo nosso de cada dia: as mulheres na Mostra 21 de 2017



por Jade Luiza

Algo que sempre me encanta no cinema é a possibilidade de me reconhecer em personagens de lugares e culturas que eu nunca conheci de perto, de diferentes idiomas, ouvir pessoas que parecem estar a apenas uma tela de distância. Essa edição da Mostra 21 [de janeiro de 2017] nos fez ver e ouvir mulheres do mundo inteiro, desde as mulheres de um pequeno vilarejo no interior pernambucano em A História da Eternidade, passando pelo horror na Nova Inglaterra com Thomasin em A Bruxa, e encerrando pelas ruas de Estocolmo com Bobo, Klara e Hedvig para dizer que o punk não está morto em Nós Somos as Melhores!.

O Sonho de Wadjda, por exemplo, nos leva a Riade, na Arábia Saudita, onde vive uma menina de 12 anos chamada Wadjda. Sim, ela tem um nome, ainda que a árvore genealógica de sua família o negue. Em se tratando de absurdo, este é o filme que nos aponta o próprio cotidiano: o que seria mais absurdo do que uma menina não poder andar de bicicleta? Talvez somente as desculpas para tanto, quando algo tão simples torna-se uma ameaça à virgindade.

Numa cultura que impele as meninas/mulheres ao traje de vários véus do conservadorismo, a voz da mulher é também sua nudez, mas para Wadjda a voz é o seu principal meio de conquistar seus objetivos ao longo do filme. A voz! Esta que é também a malícia/libertação de Thomasin, ou a insensatez/resistência de Clara em Aquarius; é o reclame pelo direito à memória. E há um preço pago para sermos ouvidas, ainda que seja numa pequena casa de shows em Los Angeles, o palco de Tangerine.

Todos esses filmes estão na corda bamba entre a sutileza e a complexidade perceptível nas cicatrizes do corpo, no (des)amor conjugal, na solidão, no silenciamento, nessas coisas que como nos diz Antía em Julieta, “ninguém que não tenha sofrido pode imaginar”. Mas não esqueçamos, porém, do afeto, da sororidade – coisa que a gente aprende em Tangerine, com Alexandra e Sin-Dee, duas mulheres trans, negras e prostitutas. Lembremos de Candy, Faith, Brit e Cotty, aquelas quatro amigas um tanto subestimadas em Spring Breakers. Talvez elas não ajam de acordo com nossas expectativas, ou não sejam exatamente como a Cindy Lauper imaginou, mas são garotas e só querem se divertir.

Esses filmes também são espelhos que nos fazem olhar para este lado ocidental do mundo e para nós mesmas; nos levam a perceber – num sentimento íntimo e muito além da empatia – e enfrentar os véus que ocultam a nossa própria identidade. Isso é o que verdadeiramente nos une, nos move. 
____


Jade Luiza é estudante de História, escritora e fotógrafa. É membro do grupo Sétima de Cinema desde janeiro de 2017.

Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 40, de maio de 2017), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.

Textos recentes da Revista Sétima postados no Blog O Berro:
- Meu romance com o cinema ou não era cilada, era amor
- Uma história: aniversário dos cinco anos do Grupo de Estudos Sétima de Cinema
- Longe deste insensato mundo
- Relato de viagem durante a IX Janela Internacional de Cinema do Recife
- ‘O Leitor’, filme de Stephen Daldry (2008): resenha crítica
- Meus 10 melhores filmes de todos os tempos, por Samuel Macêdo do Nascimento
- Na escuridão, te dedico. Sobre O Paciente Inglês
- I Love B Movies

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário