domingo, 9 de abril de 2017

Tudo (e mais um pouco)



por Amador Ribeiro Neto

Chacal (Rio, 1951) nasceu Ricardo de Carvalho Duarte. O seu nome verdadeiro está no título do livro de estreia: Muito prazer, Ricardo (1971). Tudo (e mais um pouco) (São Paulo: Editora 34, 2016) reúne sua obra do primeiro ao mais recente livro, Alô poeta (2016). Em 2007 ele havia lançado, em coedição da Cosac Naify e 7Letras, Belvedere, até então o livro mais completo sobre sua obra.

Chacal é um empenhado ativista do CEP 20.000 e um dos nomes mais lembrados quando se fala da Poesia Marginal. Integra a célebre antologia 26 poetas hoje, que a Heloisa Buarque de Hollanda organizou em 1976. Esta antologia marcou época e encheu a bola de muita gente sem talento algum pra poesia. É o caso de Chacal.

Com seu jeito desleixado de escrever, acreditando e divulgando que “tudo que você sente é você mesmo e, portanto, é sua poesia”, segue fazendo sucesso entre os adolescentes remanescentes dos anos 70. E entre os novos e velhos adolescentes das décadas de 90 e 2000. Adolescentes estes que se incumbiram de alastrar um modo de fazer poesia marcado por confundir naturalidade com boçalidade, coloquialismo com pobreza vocabular, quebra da norma com ignorância estética, crítica a autores canônicos com desconhecimento da literatura. E por aí vai, no mesmo ramerrão de horrores.

E uma das piores balelas ostentadas por Chacal é a convicção de ele que se vale da concisão e da irreverência de Oswald de Andrade. E, pra piorar o texto e o contexto, boa parte da crítica repete seu jargão. Sem avaliá-lo, é certo.

Na verdade, Chacal não passa de um diluidor dos recursos oswaldianos. Diluidor significa aqui o que o leitor já sabe: aquele, ou aquilo, que diminui a concentração com a adição de líquido. No caso, concentração é a poesia de Oswald. E líquido, o despreparo, a ignorância e a preguiça de estudar teoria e história da poesia. Só quem estuda e conhece poesia é capaz de fazê-la. Sem repetir o já feito. Sem chafurdar na pasmaceira contagiosa.

Ter sentimentos, todos temos. Ser poeta é outra coisa. É, por exemplo, converter o sentimento em linguagem, rigor, exatidão. Oswald é poeta. Pessoa, T.S. Eliot, Drummond, idem. Valéry, outro grande poeta, afirma que não basta ao poeta sentir-se inspirado. É preciso fazer o leitor sentir-se como tal. Ou seja: é preciso converter seus sentimentos, pensamentos, ações em linguagem poética.

Para Chacal, basta sentir. O resto é lero-lero, conversa mole. É assim esse seu livro. Do livro publicado em 1971, ao do ano passado, não percebemos sequer uma linha de amadurecimento. A infantilização dos textos é a tônica dominante de sua obra reunida. Não há tudo e mais um pouco. Há pouco. E quase nada.

Em 1971 ele escrevia no poema “Prezado cidadão”:
colabore com a lei
colabore com a Light
mantenha luz própria

Certo, o rapaz tinha só vinte anos. Pois bem, em 2016, com sessenta e cinco, ele escreve:
o mercado quer te regular
mas a vida não tem manual
invente-se!

Pois é. Com exclamação e tudo. Mas não tem jeito. O poeta não escreve bem. E desconfio que ele saiba disso. Vive, psicanaliticamente, insistindo, no refrão: “escreve bem, escreve bem, escreve bem”. Vem a dúvida: é um imperativo para o leitor? Ou um conselho para o próprio poeta?

Vejamos:
primeiro escreve bem
depois vai procurar sua turma
faz um zine
inventa uma banda
mas antes, escreve, escreve
e fala bem porra

O leitor deve se sentir pasmo. Os clichês usados como clichês sem mais nem por quê. Não há uma negação que possa ser mimetizada. Não há uma afirmação que se fundamente numa escrita mimética. Isomorfismo, quer seja, trama do que se diz, com o modo com que é dito, inexiste. Insisto. Busco alguma relação entre forma e fundo. Nada encontro. É um texto apenas de superfície. Leviano. Nem tangencia o essencial.

A dita poesia de Chacal não existe. Ele acredita que trocadilhar boçalmente é ser oswaldiano. Por favor, salvemos Oswald desta fria.

Chacal acha que faz rir com o poema “Chiste”, que cito integralmente:
inexistível não existe.

Chacal acha que faz poema engajado em “Ganso”:
só afogando o (passo de) ganso
vamos tirar o (Brasil do) atraso

 Chacal acha que faz rir e que faz poema engajado em “Olho”:
tu pensas que me vês
mas eu é que te vejo

eu sou mais poderoso
que o incrível hulk
mais incrível
que o poderoso chefão

porque eu sou
eu sou o olho
eu sou o olho
da televisão

Por fim, a sapiência de uma lição de vida e de poesia, escrita sob a consciência crítica, política, existencial e psicanalítica, quando contava cinquenta e seis anos, no poema “Como era bom”. Cito-o na íntegra:
o tempo em que marx explicava o mundo
tudo era luta de classes
como era simples
o tempo em que freud explicava
que édipo tudo explicava
tudo era clarinho limpinho explicadinho
tudo muito mais asséptico
do que era quando eu nasci
hoje rodado sambado pirado
descobri que é preciso
aprender a nascer todo dia

Como já disse o semioticista russo Chklóvsky, a poesia reside na singularização do objeto e na alteração de nossa percepção usual da coisa. O objetivo jamais pode ser a simplificação das coisas. Ao contrário: deve criar uma nova visão do já conhecido. E não apenas uma imagem de reconhecimento. (Isso é pegadinha, não é poesia).

Após afirmar que a língua da poesia pode se aproximar da prosa, Chklóvsky pontua: “mas sem contradizer a lei da dificuldade”. Ou seja, a dificuldade é aquela “pedra de quebrar dente”, o que “açula a atenção, isca-a com o risco”, que nos ensina João Cabral, num poema que deve ser leitura obrigatória, e diária, para todo poeta.

Pois é: a poesia de Bandeira, Drummond, de Oswald é difícil. E sua dificuldade reside na própria simplicidade. O simples é difícil. Apropriar-se do coloquial não é repetir chavões. É reciclá-lo numa linguagem rigorosamente elaborada. O resto é nada.

Ao final de Tudo (e mais um pouco) fica quase nada. Ou nada. Chacal precisa ler poesia. Que tal começar por Oswald?
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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