por Amador Ribeiro Neto
Já dissemos, neste blogue, que sua lírica “tem lugar de destaque na nossa poesia contemporânea por aliar concisão, leveza, imagens inusitadas extraídas do mais reles cotidiano. Sua dicção poética é rigorosamente construída com a emoção mais pensada. Um lirismo arquitetado por mãos e coração que conhecem bem o caminho ambíguo e oblíquo da poesia”.
Com o novo livro ela não somente reforça tais características, como acresce uma nova, bastante difícil em se tratando de livro de poesia: produz um livro monotemático. A empreitada é arriscada, mas a poeta parece gostar de desafiar-se. E o resultado é um volume em que a velha e surrada lua é tomada como mote. Perguntinha inconveniente: como alguém, em pleno século vinte e um, ainda se propõe a falar da lua?
Lua e rosa são dois temas muito explorados em poemas. Difícil encontrar um poeta que não tenha se debruçado sobre eles. A história de nossa poesia é um roseiral enluarado. No entanto, Líria faz um livro todinho com a lua. O resultado é encantador.
Na comemoração do Dia internacional da Mulher, poemas seus foram publicados na revista Mallarmagens. Todos, no caso, tematizando a mulher. Para conferir e curtir essa boa poesia, basta acessar o link http://www.mallarmargens.com/2017/03/08-de-marco-e-todo-dia-na-poesia-de.html.
No entanto, o mais bem realizado poema sobre o tema não está nesse link. É o poema “Poderosa”, de Cadela prateada. Cito-o na íntegra:
a lua surge rainha
põe-se no meio do céu
o sol não suportaria
esta mulher sem cabresto
que vai e volta sozinha
sem precisar de pretexto
Este poema fica lado a lado com o célebre, e igualmente belo, “Com licença poética”, de Adélia Prado, que termina assim: “Vai ser coxo na vida é maldição pra homem / Mulher é desdobrável. Eu sou”.
“Poderosa” recicla “Com licença poética” quatro décadas depois. Adélia se pautou em Drummond. Líria, que também se pauta no poeta mineiro, aposta no deslocamento da lua, no espaço sideral, para construir uma imagem inusitada de independência da mulher.
O que mais encanta no poema, todavia, não é seu lado engagée. É a arquitetura da linguagem. Em seis versos, alojados em três dísticos, todo o universo. Lua e sol. Céu. Homem e mulher. Mundo. O ritmo dos versos iconiza o movimento das ideias e da rebeldia da lua. A sintaxe clara e direta expõe a força da lua e a determinação da mulher. A semântica recobre um universo de astros empoderados: rainha, sol, sem cabresto, sozinha. Pois é: Líria Porto segue dominando uma das mais apuradas líricas da nossa poesia contemporânea.
A poeta, ao longo do livro, procede a um verdadeiro rastreamento dos sentimentos e sentidos que povoam o universo da pessoa amada. A lua é texto e pretexto para instalar a poesia dentro do leitor.
Ou como diz o poema que fecha o volume:
sou refém da lua cheia
ela entra pelo quarto
conhece-me os beijos
os cheiros guardados
as sombras e crateras
do meu cativeiro
sou refém da meia-lua
ela me sabe os pedaços
as tristezas os segredos
invade-me à madrugada
assiste o amor arder
sem endereço
sou refém de mim
a lua é pretexto
O poema que abre o livro anuncia: “na lua cheia / não tenho regras”, investindo na dubiedade do vocábulo “regras”. Em especial, nas conotações tanto de ‘menstruação’ como de ‘falar muito, parolar’. O eu lírico não tem regras, vive no desvio, na contracorrente, no oblíquo da vida e da linguagem. Por isso seduz (e cativa) o leitor.
Os poemas de Cadela prateada têm uma riqueza tal que vários deles, mesmo considerando as inserções eróticas que os enlaçam, abrem-se a outras leituras, como por exemplo, àquela que se destina ao público infantojuvenil. Me arrisco a dizer que há um outro livro dentro deste. Único. Independente. Com vida própria. Sejam bem-vindos, novos leitores.
Pensando bem, Asa de passarinho e Garimpo, originariamente dirigidos a este público, têm um alcance muito maior. Uma prova disso está em Garimpo ter sido finalista do Prêmio Jabuti na categoria Poesia e não Infantojuvenil.
Esta poeta sabe que o caminho da poesia não tem território fixo nem delimitado. Tudo é matéria da e pra poesia. A condição única repousa na linguagem. E isso Líria domina como poucos.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.
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