quarta-feira, 19 de abril de 2017

Dois olhos sobre a louça branca



por Amador Ribeiro Neto

Nathan Sousa (Teresina, 1973) é tecnólogo em marketing, escritor, acadêmico, professor, poeta e letrista. Autor de O percurso das horas (2012), No limiar do absurdo (2013), Sobre a transcendência do silêncio (2013), Um esboço de nudez (2014; finalista do Jabuti 2015), Mosteiros (2015), Nenhum aceno será esquecido (2015). Dois olhos sobre a louça branca (Guaratinguetá-SP: Penalux, 2016) é seu mais recente livro.

Nathan é um poeta e tanto. Disse isso quando comentei Mosteiros, aqui mesmo, em Augusta Poesia. Resultado: um fragmento do artigo foi parar numa das orelhas de seu novo livro. Feito de que me orgulho.

No entanto, seu mais recente livro é velho. Velho no sentido de nos apresentar uma poesia de fabricação conhecida, com sabor de déjà-vu. Não sei o que houve, mas Nathan resolveu investir na “poesia dita profunda”. Não se deu bem. Nem poderia. A tal poesia dita profunda é um enfeixamento de fórmulas consagradas pelo senso comum, naquilo que se acredita seja a grande poesia. Ou, simplesmente, poesia. Não é. Ledo engano. Poesia é a língua de um povo, com suas imagens e sons. Língua viva do povo, que vivifica uma nação. T. S. Eliot, que epigrafa uma das sessões do livro, com um verso de “The waste land”, disse isso num artigo antológico. É preciso aprender a lição.

Nathan Sousa revela-se admirável poeta em Mosteiros e em Um esboço de nudez – este, finalista do Jabuti. Mas erra a mão em Dois olhos sobre a louça branca. No prefácio, Alberto Lins Caldas rasga elogios ao poeta e ao seu livro: “Nathan Sousa é um poeta completo, pleno, dono do seu doloroso ofício, do seu ofício de vivente em tempos obscuros”. Lins Caldas é rigoroso na produção de sua poesia, e em seus textos críticos, mas é generoso neste prefácio. Também não funciona.

O livro peca pela inundação de metáforas, seguidas de adjetivações excessivas. Tais recursos não escondem a busca, do poeta, por uma linguagem da opulência. Há imagens em demasia, comprometendo a concisão. Esta busca de algo a mais, grandioso e magnificente, já se evidencia nas inúmeras citações que cobrem um leque que vai da mitologia grega a pop stars roqueiros. Da poesia hindu à xamanista. De Nietzsche a Kevin Carter. Do barroco ao pós-moderno.

Enfim, um painel amplo, vasto e quase irrestrito. Isso compromete a essência da poesia. Sugestão: ao invés de ficar borboleteando ao redor de tantas citações, en passant, Nathan deveria fazer o que já fez em livros anteriores: ater-se ao rigor da linguagem poética. Trocar a abundância pela parcimônia.

Vejamos. No poema “Prataria” o subtítulo já se revela majestoso: “a concavidade milenar das ostras”. Isso não é bom. A busca do pomposo acaba soando trivial. É uma prática comum entre poetas que não conhecem o caminho da poesia. E que se atrapalham nos jogos vazios de imagens. Nathan não é um poeta de volteios e desvarios neoparnasianos. Então por que os utiliza neste livro?

Outra coisa: há ingenuidade, ou comodismo, em acreditar que antíteses fazem poesia. Só o fazem quando dizem a que vêm. E quando criam relações inusuais entre termos afins. Aí, sim, funcionam. Mas em “Rapinas (dorso escuro, ventre prateado)”, de que cito a estrofe inicial, elas não produzem o efeito desejado:
vejo uma fêmea entre um feto e uma lata de detritos.
estou também na lástima desta deusa de sepultos.
e enquanto as esfinges conspiram nas esquinas,
voa uma sanha frívola de rapinas, acossando os répteis
das línguas tingidas ao sobejo e ao catchup.

Há infelicidade em construções como: “estou também na lástima”, “esfinges conspiram nas esquinas”, “sanha frívola de rapinas”, “répteis das línguas tingidas ao sobejo e ao catchup”. Pois é: o poeta não esconde seu empenho na construção de uma linguagem luxuosa, adjetivada e metaforizada. Mais grave: linguagem que se pretende inusitada. O resultado decepciona. É uma pena. Fica uma poesia à la Salgado Maranhão (a quem é dedicado um poema). Ou à la Iacyr Anderson Freitas. Falando neste, não há como não nos lembrarmos de Cabral, poeta que Iacyr clona inescrupulosamente.

Pois bem, há poemas em Dois olhos sobre a louça branca que não se desgrudam do estilo cabralino. Quando digo não se desgrudam, refiro-me a colar no grande poeta e produzir algo, não como discípulo, mas como outro retrato do mestre pernambucano. Nathan não toma Cabral para vencê-lo. Antes: é vencido por ele. E aí a marca cabralina, ao invés de conquista, passa a ser demérito. Entre outros, são exemplos da malfadada insistência: “Asas e crinas contra o tempo”, “Fascículo catalão, rabisco”, “Os ponteiros” e “Monólogo para uma gaiola (o silêncio inicial)”, que transcrevo na íntegra:
observe: este século nutre o pássaro
com cinzas, sobras e pouca sombra.
dele, sabemos da asa, do porte,
do canto (quase nada do bico).
porém, ele (o pássaro)
nada sabe do tempo que passa;
de seu desenho na paisagem;
das rinhas por onde sangra.
aprendeu (apenas) a não usar
a esgrima para domesticar as esperas.
o vertebrado (das penas) é ovíparo
e por isso nada em sua volta
está isento de mergulho:
sua plumagem de pigmentos
milenares, a evolução complexa
de combinações coloridas
(a melanina no cio, em pleno voo),
as carotenóides e as cores estruturais,
o carnaval pela máscara humana
passa (invisível). observe: o tempo
nos alimenta a opacidade
rasante.

Para além das imagens, do ritmo, da construção sintática e semântica cabralinas, nada há de Nathan aqui. O poema é bonito. Mas já foi feito. O poeta repete a lição aprendida. É um aluno aplicado. O problema é que se aplicou em demasia. Vestiu a camisa (e todo o restante da roupa) do Cabral. Assim não funciona.

Mas nem só de grandiloquência e imitatione vive o poeta. Ele também persegue a coloquialidade em alguns poemas. Sai-se bem nos versos finais de “Agudos”:
só o acaso saberá domesticar esta vaga certeza
que me fareja como se a memória e o aço
fossem desejo e língua.
ou sêmen
e pólvora.

No prefácio, Lins Caldas já havia destacado que diante da “língua que é ‘sêmen e pólvora’: a poesia que não insemina corpos e imaginações não é poesia”. Comentário que ratifica o que venho assinalando: poesia é gana, é risco, é rigor. E, para conseguir-se isso, constitui-se como “linguagem carregada de significado”, nas palavras de Pound. Exatamente: as duas coisas. Primeiro: linguagem. Segundo: carregada de significado.

De nada adiantam os malabarismos da linguagem, nem as densidades dos significados, se ambos permanecem em gôndolas distintas nas águas da poesia.

O curioso é que Nathan sabe disso tudo, de sobra. Mosteiros e Um esboço de nudez, repito, comprovam fartamente. Por que desviou o caminho certeiro das águas é um enigma esfíngico (apropriando-me de seu universo mitológico, adjetivado e proparoxítono).

Na esteira da pseudopoesia de viés filosófico, à la Antonio Cicero, temos em “Não precisamos saber (ave de Aristófanes)”:
ainda que me pesem o anonimato e a minha sombra,
restará em meu orgulho fracionado um pedaço de céu
caído como uma pedra no peito.

porém, a vida é grave,
e o tempo é o silêncio entre a lágrima
e o falso riso.

Ou no poema “Aqui se paga (sermão do sexto sentido)”, em que Vieira e a Bíblia surgem oblíqua e diluidamente:
respondo pelo que calo
e somente deus conhece
minha sintaxe de água.

porque aos peixes
é dado chorar de
olhos abertos.

Há uma displicência nesta coloquialidade a serviço das imagens surradas que não escondem o viés de autoexpiação. Além de uma pitada do pior de Manuel de Barros: a metáfora abusiva, inconsequente, encharcada de elementos da natureza.

Ou uma falsa espontaneidade das imagens associada a um coloquialismo clichê em “A remoção das montanhas (o lodo da escada)”, que cito integralmente:
subiu aos céus.
quis falar com deus,
pai, todo poderoso.

mas esquecer
os dentes no copo
de uísque, ao lado
da cama
(perto da bíblia)
onde havia anotado
o número de uma placa
de caminhão para jogar
no bicho.

Assim, Nathan Sousa não corteja o leitor: azara-o. Uma pena.

Por fim, o poeta fica devendo-nos um novo livro, pleno das delícias e dos saberes poéticos que ele domina a mancheias.
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Para ler a crítica de Mosteiros, clique aqui.

Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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