por Amador Ribeiro Neto
Arnaldo Antunes apresenta uma cantiga de ninar, num poema que desloca a anáfora para o final de cada verso, formada por uma só palavra: “dorme”.
Para que a canção enfeitice o seu ouvinte ele alinhava uma série de elementos do cotidiano da vida,e não apenas da vida infantil. Amarra tudo com a constatação de que tudo dorme. Se tudo dorme, está na hora do neném também ninar. Transcrevo o poema: “Para-raio, dorme / Temporal, dorme // Vaga-lume, dorme / Abajur, dorme // Ambulância, dorme / Camburão, dorme // Travesseiro, dorme / Meu amor, dorme // Luiz Gonzaga, dorme / Luz do sol, dorme // Sentinela, dorme / General, dorme // Caravela, dorme // Carnaval, dorme // Candelária, dorme / Candomblé, dorme // Cambalhota, dorme / Bambolê, dorme // Pensamento, dorme / Sensação, dorme // .............., dorme / Amanhã, dorme”.
A letra parece, à primeira vista, um amontoado aleatório de objetos e sensações do dia-a-dia. Tudo parece estar aqui para indicar que tudo dorme e ponto final.
Mas uma leitura mais atenta constatará que os versos são dísticos (ou seja, dispostos dois a dois em cada estrofe) e que, do conflito entre eles nasce uma imagem que os engloba e resume.
Assim, do par para-raio e temporal derivamos chuva; de vaga-lume e abajur = luz; de ambulância e camburão = sirene; de travesseiro e meu amor = sexo; de Luiz Gonzaga e luz do sol = lua (lembremos que o apelido de Luiz Gonzaga era Lua); de sentinela e general = poder; de caravela e carnaval = Brasil; de candelária e candomblé = religião; de cambalhota e bambolê = brincadeira; de pensamento e sensação = totalidade do ser; do termo não enunciado e de amanhã = surpresa.
Claro que esta leitura responde a uma das várias possibilidades que a letra sugere. A ela chegamos através do recurso neobarroco denominado, pelo franco-cubano Severo Sarduy, leitura radial. Este procedimento consiste em descobrir os elos dos significantes, em cadeia, a fim de chegar-se ao significado.
Tal procedimento, em si lúdico, estimula no ouvinte/leitor muitas possibilidades de descoberta da letra. Este exercício, que podemos fazer tanto com adultos, como com crianças, tem o mérito de tomar o receptor como co-autor do objeto analisado. Isto propicia prazer e engajamento. Prazer do achado e engajamento com o texto artístico.
A música de “Dorme” é formada por duas linhas melódicas bem simples. Diria: monocórdica. Todavia, realçada pela presença do timbre masculino (Arnaldo Antunes) e do timbre feminino (Zaba Moreau). Enquanto a voz grave elenca os seres e sensações, a voz feminina sublinha tudo com “dorme”.
Na última estrofe, ao invés do primeiro verso ser cantado, temos apenas instrumentalização. Mas o termo em anáfora – dorme – é enunciado.
Fica o silêncio, como forma de insinuar que nada mais precisa ser dito: a criança dorme e o amanhã também dorme. Ouvem-se apenas os instrumentos em solo, como na introdução: violões, cavaquinho, órgão, bandolim, baixo.
As cordas remetem o ouvinte de música popular brasileira a um mundo de ritmos conhecido: pagode, samba, chorinho. Contudo, aqui a música não é tomada pelo ritmo, mas, uma vez mais, pela distensão e pelo alongamento melódico reforçando a impressão da perda de um objeto. Nenhum objeto precisa mais ser apresentado: agora até mesmo os sentimentos e as sensações também dormem. É o repouso do mundo, do corpo e da mente.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.
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