por Harlon Homem de Lacerda
Entramos nas Primeiras Estórias. Algum desavisado ou desavisada pode se perguntar, ora e por que não começou por aqui?! E nós respondemos: calma, jovem Padawan, na arte rosiana, encontrar o início ou fim muito complicado é! Também foi complicado pros resenhistas e críticos da época de lançamento do livro. Um título provocativo que Guimarães dara ao seu mais novo livro de contos, contos não, estórias. Estórias todas curtas. 21 ao todo. A primeira estória: uma marretada no coração! “As margens da alegria” é um beliscão no espírito de quem deixa a vida carregada de complexidades, quando, na verdade, tudo é simples. Tudo é como o olhar de Menino. Não um menino qualquer, mas o Menino, a criança arquetípica, paradigmática. O menino que há em nós todos. Entre um peru que morre e um vaga-lume que brilha primeiro na noite há muito pouca diferença diante do trabalho, da dor, do amor, das expectativas, do cotidiano, do futuro. Numa estória sobre o pequeno, as pequenas sensações e primeiras perspectivas, destacamos uma invenção de Rosa: a palavra circuntristeza. Vejamos o trecho:
Cerrava-se, grave, num cansaço e numa renúncia à curiosidade, para não passear com o pensamento. Ia. Teria vergonha de falar do peru. Talvez não devesse, não fosse direito ter por causa dele aquele doer, que põe e punge, de dó, desgosto e desengano. Mas, matarem-no, também, parecia-lhe obscuramente algum erro. Sentia-se sempre mais cansado. Mal podia com o que agora lhe mostravam, na circuntristeza: o um horizonte, homens no trabalho de terraplenagem, os caminhões de cascalho, as vagas árvores, um ribeirão de águas cinzentas, o velame-do-campo apenas uma planta desbotada, o encantamento morto e sem pássaros, o ar cheio de poeira. Sua fadiga, de impedida emoção, formava um medo secreto: descobria o possível de outras adversidades, no mundo maquinal, no hostil espaço; e que entre o contentamento e a desilusão, na balança infidelíssima, quase nada medela. Abaixava a cabecinha. (grifo nosso)
O Menino que tanto se entusiasmara com a visão daquela ave, sentia-se mal por sabê-la morta. O Menino triste, o mundo triste: tudo o que o circundava não tinha graça nem alegria. Circuntristeza definiria o mundo do menino e o mundo ele mesmo para o menino. O tom emotivo-volitivo dessa invenção de Rosa é sintomático da consistência de cada estória desse livro. É nesse livro que encontraremos “Sorôco, sua mãe e sua filha”; “Os irmãos Dagobé”, “Famigerado”, “A Terceira Margem do Rio”. Um livro que foi esmerilhado, lapidado como diamante azul pelo autor e que demonstra mais uma vez a força da palavra em Rosa, na Literatura. Uma força arrasadora que transforma o mundo aos olhos do Menino e que nos ensina, nos tenta ensinar, que a vida é simples como uma tristeza que vem por conta da morte de um peru e da alegria que chega por conta da luz de um vaga-lume. A vida é passagem. É transição. É possibilidade do novo. Viver é estar sempre às margens da alegria.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.
Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
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- Perspectivas do Alheio – 01 ano
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Interessante, informativo: gostei!!!!!
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