por Harlon Homem de Lacerda
Eu não sei você, mas é muito fácil pra quem nasceu numa pequena cidade do Cariri cearense imaginar a cena de uma pessoa de fora chega7ndo a uma casa de fazenda num jipe, parando, descendo do carro sendo já aguardado por alguém sentado numa rede ou numa cadeira de balanço debaixo de um alpendre, tomando uma cachaça ou fumando um cigarro. É fácil sentir o cheiro da fumaça do jipe desfazendo no cheiro de mato molhado. Fácil ouvir os cachorros latirem, os “obas” e “acheguem-ses”, o barulho das botas tirando a terra para pisar no cimento frio e limpo do alpendre. É fácil ouvir as vozes, os jeitos, ver os trejeitos. Sentir é sempre fácil pra quem é do sertão. Guimarães Rosa imaginava, via, vivia, sentia tudo isso com a argúcia de um gênio e materializou pra nós uma conversa entre esse que recebe e aquele que chega, uma conversa que se tornou a conversa na qual manda quem pode e obedece quem tem juízo. Adequando melhor: fala quem pode, escuta quem tem juízo. Riobaldo fala. O doutor da cidade escuta. Nós maravilhamo-nos.
Optamos na coluna desta semana por retomar um texto que escrevemos e publicamos no livro Olhares Bakhtinianos: ensaios de análise literária (Pedro e João Editores, 2015). O tom sisudo e acadêmico pode até estar longe de nosso tom natural nesta coluna, mas é que Grande Sertão: veredas pede um traje de passeio completo. Esperamos que vocês gostem.
Existem várias intervenções hermenêuticas do Grande Sertão: veredas. Sua fortuna crítica é das maiores da literatura brasileira. Entretanto, algumas delas seguem um paradigma interpretativo que deixa poucas entradas possíveis para uma leitura diferente (Willi Bolle, na introdução do grandesertão.br, mostra esses paradigmas). É numa dessas poucas entradas que resolvemos fincar nossa análise: a dúvida. Riobaldo apresenta ao longo da narrativa várias questões ao seu interlocutor e em poucos momentos temos no narrador a certeza de alguma coisa. É neste sentido, que iremos ler o Grande Sertão: veredas como um romance sobre a dúvida, tanto temática (ou arquitetônica) como material (ou composicional).
O romance é narrado em primeira pessoa. Esta escolha composicional do autor deixa o texto literário num terreno arenoso que dificulta a certeza, que dificulta a confiança no narrado. Junto a essa incerteza composicional, somos guiados pelo narrador através de uma questão temática, de uma dúvida: o diabo existe ou não existe? Este leitmotiv desdobra-se em outras questões sempre relativas à possibilidade do mal, ou do mal personificado: o diabo e suas manifestações. Não há, entretanto, uma relação maniqueísta entre o bem e o mal ou entre deus e o diabo. Tudo está intricado, reforçando a dúvida:
Melhor se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente virar azangada – motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno sempre, com mudas seguidas, de manaíbas – vai em amargando, de tanto em tanto, de si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também que às vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o senhor já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces duma cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de, pudesse, roncar e engolir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião, corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar para adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas – que estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas dorme: são o demo. Se sabe? E o demo – que é só assim o significado dum azougue maligno – tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre, ele está misturado em tudo. (p. 04)
Mesmo os feitos, os acontecimentos, as ações, são sutilmente relegados à dúvida. Depois da passagem do bando de Joca Ramiro pela fazenda São Gregório, Riobaldo conta a seu interlocutor o comportamento “enjoativo” do seu “padrinho” Selorico Mendes: “Parecia que ele queria se emprestar a si as façanhas dos jagunços, e que Joca Ramiro estava ali junto de nós, obedecendo mandados, e que a total valentia pertencia a ele, Selorico Mendes.” (p. 103, grifo nosso). Pode o filho ter herdado o comportamento do pai? Não há como ter segurança absoluta na narrativa de Riobaldo. Há algumas marcas da possibilidade da “invenção” ou “empréstimo” de façanhas alheias “tomadas” por Riobaldo. Por exemplo: “Ou conto mal? Reconto.” (p. 49); o trecho da narrativa de Davidão e Faustino (pp. 69-70) tem momentos de metalinguagem que ilustram a possibilidade de que tratamos: “Pois mire e veja: isto mesmo narrei a um rapaz de cidade grande, muito inteligente, vindo com outros num caminhão, para pescarem no Rio. Sabe o que o moço disse? Que era assunto de valor, para se compor uma estória de livro. Mas que precisava de um final sustante, caprichado” (p. 70). E adiante: “Apreciei demais essa continuação inventada” (p. 70); Por fim: “No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso...” (p. 70). É possível encontrar outras marcas metalinguísticas ao longo da narrativa que fundamentam o possível “empréstimo” e carregam a estória de Riobaldo de um acento fantasioso, inventado, ligando-a à própria narrativa elaborada por Guimarães Rosa, num espelhamento infinito que reforça a dúvida, o jogo de incertezas destacado por nós.
Bem diferente de Riobaldo é o narrador do livro Os Sertões de Euclides da Cunha. Tomemos um trecho da terceira parte do livro, mais narrativa que descritiva ou antropológica:
Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia estava a braços com outras insurreições. A cidade de Lençóis fora investida por atrevida malta de facínoras, e as suas incursões alastravam-se pelas Lavras Diamantinas; o povoado de Barra do Mendes caíra às mãos de outros turbulentos; e em Jequié se cometiam toda a sorte de atentados (p. 213).
Se considerarmos a duas primeiras partes do livro de Euclides da Cunha como uma explicação ou contextualização para a “luta” que surge na terceira parte, teremos a exposição da necessidade de uma lógica linear construída para que o leitor compreenda todo o movimento implicado na Guerra de Canudos. Para não haver a fuga de nenhum detalhe ou para reforçar a precisão quase milimétrica das colocações do narrador, tudo deve ser explicado, anotado, exposto. E no Grande Sertão: veredas? A narração é disposta de maneira radicalmente diferente da euclidiana. O narrador vai e volta, conta e reconta sua estória, ele reforça a dúvida a todo o momento. Seguindo de perto o pensamento de Willi Bolle no grandesertão.br temos, no romance de Guimarães Rosa, uma oposição bem marcada diante do narrador de Cunha.
Bolle, no capítulo introdutório de seu livro, desenvolve a ideia de que Grande Sertão: veredas estaria filiado aos Retratos do Brasil – iniciativa fecunda de intelectuais brasileiros na primeira metade do século XX – e justifica, através da apresentação de várias evidências possíveis, que Guimarães Rosa leu Os Sertões pouco antes ou durante a produção de seu romance além de trazer várias indicações teóricas para a noção de reescrita da História. Bolle desenvolve nesse capítulo inicial a ideia de uma posição irônica de Rosa em relação a Euclides da Cunha a partir de três elementos: 1) o tom da narrativa. “Com a palavra ‘Nonada’ inicia-se uma fala radicalmente oposta aos ‘superlativos’ de Euclides” (p. 40); 2) a “construção da situação da narrativa”. O sertanejo sendo o dono da fala; 3) A auto-ironia do narrador. “Na base de sua fala está um constante questionamento do próprio narrar” (p. 41).
Esta abordagem de Willi Bolle parece-nos importante, pois estabelece um diálogo construtivo com a fortuna crítica, não apenas negando-a ou corroborando-a. Além disso, ele situa o romance de Guimarães Rosa tanto com a tradição literária brasileira e ocidental como com as reflexões sobre o Brasil, promovidas desde Os Sertões de Euclides da Cunha. Outro ponto importante que frisamos em relação ao texto de Bolle, é o posicionamento crítico do autor diante da obra euclidiana, demonstrando o que há de castrador em suas descrições e reflexões sobre a guerra de Canudos e sobre o sertanejo, figura essa que Guimarães Rosa retira da mordaça e dá voz através de Riobaldo. Numa postura semelhante à de Rosa, Bolle constrói sua reflexão dando ouvidos não apenas ao que se diz sobre o sertão e o sertanejo, mas tentando apresentar o próprio sertanejo e seu lugar, o sertão.
João Adolfo Hansen, outro grande crítico da ficção rosiana, coloca Guimarães Rosa como um escritor que parodia, ironiza e dissolve os textos realistas. Ele está bem próximo da colocação de Antonio Candido de que Guimarães Rosa sugere para inventar. Os dois críticos encontram no escritor mineiro um modus operandi que sugere uma produção diferente do que era (ou é) feito na literatura brasileira ou latino-americana. Seguindo o raciocínio de Hansen e Candido, podemos crer num universo criativo inovador na produção rosiana. Em Grande Sertão: veredas, a ideia de uma dúvida norteadora tanto temática como estrutural (arquitetônica e composicional) inviabiliza qualquer simplificação, qualquer classificação limitadora da obra. Assim o infinito, a travessia se mantém aberta. A não-finalizabilidade do texto literário, como caracteriza Bakhtin, encontra na narrativa de Riobaldo um exemplo paradigmático.
Grande Sertão: veredas materializa a dúvida fazendo o leitor (ou co-criador) permanecer nela. As questões centrais não encontram resolução. Um elemento simbólico desta característica é a inexistência das Veredas Mortas quando Riobaldo volta de sua última batalha. O lugar não existe mais. Não há como desfazer. Não há como fazer nada. Não há como construir uma certeza, uma verdade. A única saída do fazendeiro é viver de range-rede mastigando a dúvida para todos os que escutam/leem sua estória. Mesmo Quelemém de Góis não pode encontrar uma resposta e, assim, na religião, na História, na estória, na linguagem a dúvida se mantém inalterada, eterna.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.
Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Tu leu Buriti?
- Perspectivas do Alheio – 01 ano
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Jiní
- Dossiê João Guimarães Rosa – Cara-de-bronze: ‘Duas coisas’
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- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – O vaqueiro minino
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – A criança paradigma
- Dossiê João Guimarães Rosa – Seguindo a travessia
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Ruminando
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Corpo Fechado
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