quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

‘O Carnaval no Crato’, por Irineu Pinheiro (séc. XIX e início do séc. XX)



Grifo nosso # 98

Hoje lançamos mão de um texto de Irineu Pinheiro, publicado no livro O Cariri, de 1950. O texto relata algumas características e episódios de carnavais da cidade de Crato, na segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX:



O Carnaval no Crato

Extremamente grosseiro, às vezes brutal, mas sempre divertido o carnaval dos nossos avós.

Eram os entrudos, antigamente, o triunfo mais completo da água.

Percorriam as ruas grupos armados de bisnagas de flandre, de cerca de 50 centímetro de comprimento e de 5 de diâmetro, cheias de água, cujos jactos não respeitavam sexos nem posições sociais.

Fabricavam-se de flandre, como se disse, ou então de taboca, os êmbolos de pau enrolados em tiras de pano.

Assaltavam-se casas amigas, que se defendiam do melhor modo possível, com bisnagas também, com baldes e canecos d’água, etc.

Depois dessas refregas, tudo ficava alagado, desde a sala da frente até a cozinha.

Ocasiões houve em que se empregaram outros líquidos.

Li, não me lembro onde, que, uma vez, numa casa assaltada por um grupo de rapazes, saíram do interior, a afrontá-los, as moças da família, que por sinal eram bem bonitas, às mãos urinóis que puseram em rápida fuga os invasores.

Não raro se viam nas ruas tinas com água, em que se mergulhavam implacavelmente todos os que por ali passassem, fossem quem fossem.

Uma feita, no Crato, aí pela era de [18]70, o coronel José Antônio de Figueiredo, que depois fundou a Farmácia Central do Cariri, rebelou-se contra os que queriam metê-lo num grande tonel d’água posto numa das ruas da cidade.

Trancou-se na sua loja, engatilhou um bacamarte, mas os terríveis foliões não desanimaram, tentando arrebentar as portas do prédio, penetrá-lo por meio de escadas através das janelas de um sótão, as quais olhavam para a atravessa da Califórnia, uma das mais movimentadas artérias cratenses.

Fez-se mister a intervenção de pessoas respeitáveis que conseguiram dominar os exaltados.

Com os tempos, foi-se amenizando o carnaval.

Não mais tinas no meio das ruas, nem balde d’água, mas apenas as bisnagas, as laranjinhas de cera colorida de vermelho, de amarelo, de verde, repletas d’água perfumada, que chamavam água de cheiro.

Nos dias de entrudo encontravam-se na cidade, a cada passo, moleques, à cabeça bacias de flandre com água em que boiavam laranjinhas, a apregoá-las e vendê-las a vintém cada qual.

Uma das mais afreguesadas fabricantes era Maria Porforça, muito popular, moradora à rua Grande.

Sei que no Icó, além das laranjinhas de cera, outras se faziam com lâminas muito finas de borracha, vinda do Pará em forma de pães, as quais lâminas eram dobradas à maneira de um saco, cheias d’água por intermédio de seringas.

Amarrava-se, depois, com linha grossa a boca franzida do saquinho improvisado.

Passeavam as ruas do Crato mascarados, vestidos extravagantemente de roupas velhas, alguns encourados à semelhança de vaqueiros, todos a falarem em falsete.

Em menino, aterravam-se esses caretas, como os apelidavam.

Espiava-os de longe, pronto a correr e a esconder-me, ao menor gesto de aproximação dos mesmos.

Eu temia, sobretudo, certos deles que seguravam pelo cabo longos bacalhaus de relho cru, a meneá-los de vez em quando, ameaçadoramente.

Usavam-se máscaras de arame, compradas nas lojas, ou de papel, feitas em casa.

Moldavam-se em barro caras humanas, nas quais, após as cobrirem com um pano molhado, se superpunham camadas de papéis, ligados uns aos outros com grude de goma de mandioca, ajustados de tal sorte que neles se reproduzissem os relevos do modelo.

Pregado o derradeiro papel, que era branco e bem limpo, retirada do molde a máscara, abriam-lhe a pequenos golpes de canivete os olhos e rasgavam-lhe a boca, costuravam-lhe, em seguida, com cabelos de cauda de cavalo, ou de boi, as sobrancelhas, o bigode, a pera, o cavanhaque.

No começo deste século [XX] o carnaval evolveu no Cariri.

No Crato criaram-se clubes, cujos associados dançavam nas casas de família, previamente avisadas dos assaltos que lhes pretendiam dar os clubistas.

Recebiam-nos muito bem, oferecendo-lhes copos de cerveja, cálices de vinho, doces e bolos.

Muita gente se recorda, ainda, do clube “Água e Cera”, do “Clube dos Democratas” e do “Clube dos Esfolados”.

De uma casa para outra, os do “Água e Cera”, aos pares, de braços dados, cantavam a plenos pulmões, ao som da música do Zé Pereira, tocado por uma orquestra composta de uma rabeca, uma flauta, um bombardino, um trombone e um clarinete, as seguintes quadras:

Viva o “Água e Cera”,
Este clube sem rival!
Vivam os companheiros
Deste nosso carnavaaal!

Vamos, vamos, companheiros,
Andar como aristocratas
Para ver se conseguimos
Derribar os “Democratas”.

Companheiros, companheiros,
Tudo aqui é divinal!
Marchai, marchai, companheiros,
Nesta marcha triunfaaal!

Exibiu esse clube, que foi o mais notável de todos, carros simbólicos e de crítica que, em préstito, atravessaram as ruas da cidade despertando entusiasmo na multidão.

Em 1909, disse o “Correio do Cariri” ter ele exibido “um belo carro alegórico em que se via a figura da República empunhando o estandarte brasileiro tremulante ao vento”.

Sacudiam-se confetes multicores e cruzavam os ares as serpentinas.

Naquele ano de 1909, desfilaram, a cavalo, pelas ruas do Crato os membros do clube, dois a dois.

Não participavam as mulheres dos folguedos carnavalescos.

Nas danças em casas particulares, alguns dos sócios dos clubes representavam os cavalheiros, fingiam damas outros que envergavam saias e corpetes, traziam cabeleiras supostas, brincos e pulseiras, calçavam sapatos de salto alto, carminavam as faces das suas máscaras, arredondavam os seios.

Em seu número 288 escreveu o “Correio do Cariri”: “Depois do passeio o ‘Clube Água e Cera’ dançou em diversas casas de família, deixando boa impressão pela elegância dos seus vestuários e ordem com que sempre se sabe portar”.

Às vezes os do “Água e Cera” iam aos sítios da vizinhança, cujos donos os recebiam festivamente.

Ano houve em que os meninos, no Crato, realizavam cortejos carnavalescos.

Em 13 de fevereiro de 1910 alguém comentou no “Correio do Cariri”: “Não fora um préstito carnavalesco de meninos que pelas ruas transitou, outra cousa não haveria despertado o sono contínuo da alma cratense ou quebrado esse marasmo, essa pasmaceira insuportável que domina moços e velhos. Os meninos, não há dúvida, deram letra e eu os felicito e lhes agradeço de coração por mim e por todos, a quem a carapuça couber, a lição preciosa e inestimável que nos deram”.

Foi José Gonçalves de Sousa Rolim, farmacêutico, quem, em 1912, vendeu pela primeira vez no Crato, tubos de lança-perfumes.

Em 1935 e 1936 foi animadíssimo o carnaval no Crato.

De pontos determinados da cidade, às sete horas da noite, partiam cordões, o “Eu só vou se você for”, os “Batutas da Folia”, outros de nomes parecidos, os quais, cantando e pulando, iam até a sede do “Crato-Clube”.

Acabado o baile, ali pelas três horas da manhã, saíam eles sempre a pular e a cantar, davam algumas voltas pelas ruas, dispersando-se em seguida.

Em 1936 prepararam carros que representavam navios de guerra, aviões, mui apreciados pelo povo.

No ano de 1942 as festas de carnaval entre os esguichos dos lança-perfumes, se reduziram, quase, aos salões dos dois clubes locais: o “Crato-Clube” e o de Associação dos Empregados no Comércio do Crato”.

Ao som do velhíssimo Zé Pereira, do lero-lero, de quejandas outras músicas, dançou-se em 42, ruidosamente, até o alvorecer da quarta-feira de cinzas.

Elegeram-se rainhas, coroaram-nas entre discursos e palmas.

Mais de uma vez, nas sedes sociais desses clubes montaram alto-falantes, os quais enchiam de barulho os recintos e, também, o resto da cidade, que dormia ou queria dormir.
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Irineu Pinheiro, no livro O Cariri (Fortaleza: Edições UFC, 2010. Coleção Nossa Cultura). Fac-símile da edição de 1950.

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