quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Caetano e uma poemúsica de ninar



por Amador Ribeiro Neto

Há uma poemúsica de Caetano Veloso que é cantiga de ninar.  Chama-se “Tudo tudo tudo” e está no disco Joia, de 1975. Transcrevo a letra: “Tudo comer / Tudo dormir / Tudo no fundo do mar”.



Composta por apenas três versos, o poema tem o vocábulo “tudo” colocado em anáfora no início de cada verso: repetição que abrange não apenas “tudo”, mas “tudo tudo tudo” – três vezes.

O que o poema parece buscar é, através da soma, a totalidade. Mas, ao invés de se chegar a um resultado, a um terceiro elemento como consequência lógica das parcelas, temos a mera repetição dos termos: tudo + tudo + tudo = tudo tudo tudo . Um todo que não se separa nem por vírgulas. 

Espalhar e recolher termos é um procedimento barroco conhecido como disseminação e recolha. Mas, se no barroco, tal procedimento se processa obedecendo a uma ordem formal – de fato os termos são espalhados ao longo do poema e recolhidos no último verso –, nesta letra Caetano espalha o termo tudo paralela e simetricamente, um em cada verso, mas a recolha é transferida para o (e antecipada pelo) título da letra.

Há, de fato, uma inversão no procedimento barroco.  Esta quebra de expectativa está presente, isomorficamente, na interpretação que Caetano dispensa à canção.

Temos, assim, um dos modos possíveis de interpretação da repetição do vocábulo tudo. Vocábulo que é, gramaticalmente falando, um pronome indefinido. E aí encontramos uma pista para o porquê da soma não gerar um resultado, mas a repetição dos termos da sequência: tudo é um, é uno, é todo.

Mas “tudo tudo tudo” é indefinido. Podemos dizer que é tríplice, e que é tríptico – no sentido de ser uma obra formada por três partes.

Todavia, diferentemente da estrutura das obras, aqui os dois versos iniciais (“tudo comer / tudo dormir”) nos encaminham para o terceiro verso, que rompe o encadeamento gramático-estrutural – composto por pronome indefinido + verbos no infinitivo –, e encaminha o ouvinte/leitor uma possível conclusão: “tudo [está] no fundo do mar”.

Digo possível conclusão pois, tal como nos haicais, o terceiro verso não é a soma resultante dos dois primeiros, mas, juntamente com eles, gera um terceiro elemento que amplia o sentido dos versos anteriores.

É parte que leva ao todo. O todo que é mais que a soma das partes.

“Tudo no fundo do mar”, verso final da letra, remete-nos, também, ao mundo da psicanálise ao fazer referência à imensidão do oceano, à vastidão do sono, ao desconhecido do inconsciente.

E por estarmos num mundo de parte que é todo e todo que é parte, de soma que é tão somente elenco de frações de sentido, adentramos na esfera das sugestões, do onírico, do devaneio.

Ao invés de se buscar o significado, que propositadamente escamoteia-se, adentra-se o ouvinte/leitor no mundo das águas do fundo do mar.

Ao interpretar a música, Caetano começa apenas vocalizando a melodia, ao ritmo de palmas. Depois passa a cantar apenas a palavra “mar”. A seguir canta as desinências verbais,“-er, -ir” + o vocábulo  “mar”. Depois “comer, dormir, mar”. E finalmente canta toda a canção.

Em seu livro Alegria Alegria Caetano faz a seguinte observação: “Devia ser escrito assim:  mmmmmmmmm / mmmmmmmmm / mmmmmmmmmar”. E complementa: “como foi cantado pra ninar Moreno. De algum modo deviam ir surgindo embriões de sílabas até o que finalmente é o texto ganhar forma”. 

Assim, Caetano inverte o sentido que a letra, sozinha, provoca. Na interpretação cantada o mar é o primeiro elemento a surgir, e não o último, como está na letra.

É como se o intérprete fosse acordando, às avessas, parte por parte da letra, até chegar ao seu todo. Ou, ainda, é como se o mar – que tudo engole, que tudo envolve –, fosse devolvendo as imagens do que ele submergira.

Ao concluir a interpretação, a palavra mar tem sua vogal mais distendida que tivera até então. É o momento da tensão e da distensão. É o momento do repouso.

Como dissemos, o arranjo musical é constituído apenas pela vocalização e pelas palmas. Uma cantiga de ninar para ser cantada no quarto do neném, sem recursos de outros instrumentos que não sejam a voz e as mãos. Poesia e música: poemúsica. Quem há de negar?
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

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