por Amador Ribeiro Neto
O gingado do malandro de morro, a embolada do nordestino sertanejo, a malemolência dos sulistas fronteiriços, o som retroflexo dos caipiras, etc., pipocam aqui e ali em nossas músicas, sem constrangimentos. Seja no funk, no rap, no partido alto, no samba de breque, no rock de garagem, no coco de roda, no hard rock, no mangue beat, no punk rock, no bolero, no brega sertanejo, no abolerado blues, no axé music, no forró, no pagode, na embolada, etc. e tal. Em tudo a fala está presente. Em forma de música.
Em outras palavras: interpretar música popular no Brasil é cada vez mais um ato de sofisticação. Periga até de o ouvinte não estar dando conta disto. Mas a verdade é que o canto popular está atingindo altos índices de qualidade interpretativa. Pena Branca e Xavantinho estavam levando a ferro e fogo a lição que aprenderam com a tradição musical brasileira (terças e oitavas num acordo estranho e bem sucedido), somada às conquistas dos grupos paulistas que fizeram uma música nos anos 80. Geração que ficou conhecida como Lira Paulistana: referência tanto ao teatro, em Pinheiros, onde estes grupos se apresentavam, como ao livro de Mário de Andrade, que, por sua vez, motivara o nome do teatro. São deste tempo, por exemplo, o trabalho com o canto-falado do Grupo Rumo (com a experiência de compositor e intérprete de Luiz Tatit e de Ná Ozetti), o genial Itamar Assumpção, o vocalista-radialista Arrigo “Dodecafônico” Barnabé, os irreverentes grupos Língua de Trapo e Premeditando o Breque, entre tantos outros.
Um ouvido mais atento percebe que desde Donga, com “Pelo telefone” (1917), até o mais recente disco de Criolo, Convoque seu Buda (2014), a interpretação canto-falada & malandra é uma das marcas mais fortes de nossa música popular.
Verdade seja dita: o canto misturado com a fala é marca de qualidade interpretativa de nossa música popular - uma das músicas populares mais criativas do mundo.
Este balanço maroto, que a voz cantada surrupia da fala, desbancou de vez os dós-de-peito dos cantores-estouradores-de-tímpanos. Aí a invenção do microfone é importante, como vimos na coluna anterior. Não apenas revolucionou as possibilidades de gravação: acabou definindo uma nova postura diante da própria voz.
Se o rock viria liberar a voz das categorias harmoniosas, ao introduzir o ruído como componente interpretativo, o uso do microfone já tinha liberado os cantores de “voz pequena”, colocando-os nos primeiros lugares das paradas de sucesso. Foi assim com Orlando Silva, Mário Reis, João Gilberto, Nara Leão, Roberto Carlos, Chico Buarque, e tantos mais.
Se temos hoje vozes privilegiadas como as de Gal Costa, Caetano Veloso, Zé Renato, Elza Soares, Vânia Bastos, não resta dúvida de que estes cantores sabem muito bem que a voz é um suporte para a canção – e não o contrário. Os exibicionismos vocalísticos, que vinham sendo paulatinamente enterrados, receberam o golpe de misericórdia com o estilo “cool” da Bossa Nova e a consciência musical da geração Lira Paulistana.
Hoje, Marcelo D2, Criolo e Zeca Pagodinho sussurram malandramente. Esta tríade confirma que nossa música popular não é só letra e música – mas também interpretação.
O compositor, é bom que se diga, tem no intérprete, e no arranjador, co-autores da canção. E isto conta muito! Como conta!
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.
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