por Amador Ribeiro Neto
Mas o que nos interessa é aquela coisa da ginga, do molejo, da musicalidade que habita a fala de cada um de nós. Sabemos que a entonação da fala possui um tipo de musicalidade. Alguns músicos sacaram muito bem isto. Noel Rosa foi um deles. Com seu jeito macio de falar, com o fio de uma voz fraquinha que vinha de um pulmão doente, o compositor de “Feitio de Oração” inovou a interpretação em nossa MPB, além de fazer escola. Mário Reis, e depois João Gilberto, souberam muito bem desafinar o coro dos tenores. Inventaram uma nova maneira de cantar incorporando a tecnologia do microfone, que amplia a voz e dispensa os contorcionismos pulmonares.
Noel talvez seja nosso primeiro intérprete bossa-novista. Nara Leão alcunhada de “os joelhos que cantam” (tinha belas pernas, era tímida e cantava “cool”) renovou o modo de cantar popular entre nós. Sua interpretação sensível e miúda, aliada a um repertório engajado com o que melhor se fazia na época, deixa saudades, além de boas e bons herdeiros, felizmente. Pena que ao ser substituída no espetáculo “Opinião” (em 1964) pela estreante Maria Bethânia, a garra-carcará do modo de cantar atarracado aos pulmões tenha voltado à moda. Bethânia musicalmente é uma anti-Nara. Enquanto para a primeira cantar é interpretar stanislaviskamente, para a segunda o canto é sempre brechtniano. Ou seja: Bethânia enche os pulmões e solta a voz em todas as direções, atingindo e estremecendo quem estiver na área. Nara é parcimoniosa: seu canto é produto de um ato de contenção e elaboração cerebral da voz. A emoção é filtrada pelo rigor de um canto-falado. Nara canta como quem está pensando, tal como nos versos de Fernando Pessoa: “o que em mim sente está pensando”. Síntese de razão e emoção.
A poesia, num primeiro momento, ao ser fixada no papel, dispensou a memória e a oralidade. Cristalizou-se em formas fixas e começou a emaranhar-se num círculo de formas e sentidos vários. O papel agora fazia o que a memória não permitia: guardar termos e ritmos arqui-irregulares, elencar expressões até então só dicionarizadas, realçar os esdrúxulos como requintes poéticos. Era a hora a vez da poesia empolada, palaciana, cheia de volteios e lero-leros.
Felizmente este foi apenas um momento. Embora, de tempos em tempos, poetas insistam na acepção de que fazer poesia (e muitas vezes prosa, e até crítica literária) é embolar o meio de campo do texto com metáforas cifradas ou jogos de palavras numa colagem “nonsense”. De repente, aquela besteira fácil e inconsequente que os surrealistas denominaram “escrita automática” vira moda entre os incompetentes que querem “fazer” literatura ou “crítica” literária.
Por sorte sempre tivemos autores que romperam com o círculo fácil do preciosismo verbal enquanto qualidade literária. Na época colonial, Gregório de Matos é um grande exemplo da poesia que se apropria da oralidade da fala sem comprometer minimamente a fabricação do texto poético. Não é à toa que ainda hoje nós o lemos com muito deleite.
Indo além do período barroco encontramos outros poetas que prezaram a oralidade enquanto qualidade estética. Tomás Antônio Gonzaga, com Marília de Dirceu e Cartas Chilenas. Álvares de Azevedo com Lira dos Vinte Anos. Cruz e Sousa com Broquéis. Augusto dos Anjos com Eu. Todos eles foram oásis de respiração oral em meio a uma enxurrada de beletrismos. A partir de 1922, com os modernistas, a literatura se deu conta de que, para ser boa, uma obra não precisa desprezar a fala. Pelo contrário: a oralidade garantiu a qualidade de muitos poetas modernistas, como Manuel Bandeira, Mário e Oswald de Andrade. Drummond veio logo depois e foi logo reclamando da pedra no meio do caminho que uns parnasianos anacrônicos queriam ressuscitar. E que finalmente ressuscitaram com a geração de 45, exceção feita ao grande João Cabral de Melo Neto, inserido nesta geração apenas cronologicamente. Cabral radicalizou a fala em Morte e Vida Severina e em Dois Parlamentos. Mas dela nunca abriu mão. Talvez fosse um bom tema de reflexão: o rigor de uma forma valéryana associado a uma oralidade não menos radical.
A partir da produção dos modernistas, e até nossos dias, oralidade está ligada ao que há de mais experimental em nossa poesia.
____
Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário