segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Chico César: a poesia da canção



por Amador Ribeiro Neto

Desde 1995, quando lançou Aos Vivos, seu primeiro CD, Chico César tem se revelado um compositor e intérprete de grande talento. E assim tem permanecido até seu mais recente trabalho, o brilhante Estado de poesia (2015).

Este paraibano de Catolé do Rocha tem se revelado um compositor de primeira linha da MPB. Seu processo de criação segue as diretrizes antropofágicas de Oswald de Andrade que apregoa a deglutição de toda e qualquer cultura, sem espécie alguma de preconceito, visando à produção um objeto singular, genuíno e, por que não dizer, brasileiro. O Tropicalismo bebeu fartamente nas águas do saber oswaldiano. Juntou Carmen Miranda com Miles Davis; Chacrinha com Chaplin; samba de roda com atonalismo, Eisenstein com Vera Cruz, Mondrian com Di Cavalcanti, Vicente Celestino com Stravinsky. O resultado todos conhecemos: um forte movimento artístico-musical que hoje, por exemplo, deita suas raízes sobre os nomes mais interessantes da MPB, das artes plásticas, do teatro, do cinema e até da moda.

Chico César é uma legítima cria do Tropicalismo. Ele incorpora conscientemente o projeto tropicalista, nas letras, nas melodias, nas roupas, nas performances no palco, no uso da voz. Sua atuação no cenário artístico nacional e internacional apaga as fronteiras entre a cultura considerada erudita e a cultura considerada popular. Associa o forró ao jazz, a ciranda ao reggae, a poesia concreta ao cordel, o haicai a letras discursivas. Mistura Augusto de Campos com Cego Aderaldo; Woody Allen com Mallarmé; cavalo de pau com sandália havaiana; nirvana com seca nordestina; Jimmy Cliff com  Mandela.

Antenado com as coisas do nosso tempo, suas canções sempre mexem conosco. Umas pelo ritmo; outras, pelas melodias; outras pelas letras; e outras, finalmente, por reunirem todos estes itens com qualidade. Percebe-se que em sua obra desponta uma consciência de linguagem, ou seja, um projeto intencional de construir a criação, de experimentar com as linguagens, de buscar algo novo e, ao mesmo tempo, harmônico. Afinal, antes de mais nada, uma canção popular tem de associar o belo ao agradável. Há exceções: ótimas canções, porém nada agradáveis. Não me refiro a elas. Busco um consenso mais amplo: canção é espaço poético de letra e música cantadas harmoniosamente. Cantadas com a naturalidade de quem fala. Chico canta como quem fala. Às vezes ele fala mesmo, como em “Béradêro”, “Solidariedade”, “Papo cabeça”, “Reis do agronegócio”, entre outras.

Chico César faz sua antropofagia “comendo” no prato da História da MPB, da Poesia, da Cultura Popular, da Política Internacional, etc. Come até se lambuzar. Um exemplo rápido: no forró “Paraíba, meu amor”, cujo título já nos remete à música “São São Paulo” (meu amor), do eterno tropicalista Tom Zé. Pois bem, o compositor paraibano associa o forró pé-de-serra e a voz de Flávio José a uma letra sofisticada que lá pelas tantas diz: “não quero chorar / o choro da despedida / o acaso da minha vida / um dado não abolirá”. A cadência envolvente do forró cai bem na citação dos célebres versos mallarmaicos: “um lance de dados / jamais abolirá o acaso”. Casar a poesia de Mallarmé com as festas de São João é “instalar a parabólica no mangue”, como apregoa o movimento musical Mangue Beat, também herdeiro do Tropicalismo.

Versos à frente, na mesma música, o compositor refere-se à “fogueirinha de laser” que “ilumina os festejos do meu coração”, cruzando as festas do interior com o “novo” coração do poeta que, longe da terrinha natal, e agora Pós-moderno, pulsa no ritmo envolvente do forró.

A interação sua poesia com a de outros autores é uma das marcas mais visíveis da poética de Chico César. Na música “A prosa impúrpura do Caicó”, desde o título uma referência ao belo filme A rosa púrpura do Cairo, de Woody Allen, Chico diz: “ah Caicó arcaico / meu cashcoeur mallarmaico / tudo rejeita e quer”. Um jogo de modas e modos e compor.

“Cachecoeur” é uma vestimenta feminina, mas Chico cria a palavra “cashcoeur”: substitui o “cachê”, que significa cobrir, enrolar, em francês, por “cash”, que é dinheiro vivo, em inglês. Resultado: o “coeur”, coração, em francês, que se agasalhava romanticamente, passa a ser também mercadoria que transita no mundo financeiro.

Tem mais: ele apronta com a palavra Caicó, reverberando-a dentro da palavra arcaico (arCAICO). Reverberação de sons e sentidos. Como se o compositor lançasse o dado da palavra arcaico e numa das faces do dado aparecesse Caicó, noutra, Ar, noutra Cai, noutra Ai e assim sucessivamente até chegar à possibilidade de serem criadas novas palavras, como o adjetivo catolaico que Chico César cria para significar, entre outros, descrença (laico) e fé (católico).

É: o grande lance de Chico César é jogar com o inusitado e não subestimar o público. Sorte de todos nós.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.

créditos das imagens - 1ª foto: Karime Xavier/Folhapress; 2ª foto: Junior Lago/UOL.

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