por Harlon Homem de Lacerda
Uma grande amiga me apresentou Guimarães Rosa e ela, que não tem pena de mim, foi logo mandando eu ler Campo Geral. Li numa noite e liguei pra ela assim que terminei: “Nega, que livro massa da porra! Tô chorando aqui!”. Ela sorriu e disse (acho que foi isso, pelo menos é a cara dela): “Chore, meu amigo, chore bem muito! Esse livro é tudo de lindo!”. Anos depois lá estava eu inventando de estudar a ficção completa de Guimarães, coisa que ela já tinha feito, e, num bar, eu perguntei: “Nega, tu se ligou que o Miguel de Buriti é Miguilim de Campo Geral?”. Ela disse: “Eu não...”. Até hoje, eu pergunto (e mais alguns amigos que estavam à mesa naquele dia): “Nega, tu já leu Buriti?” Só pra infernizar a vida dela um pouquinho.
Mas, Miguel nem é a personagem principal de Buriti. A Nega não precisa nem se preocupar por não ter lembrado isso, por que a personagem principal não é Miguel, é o Buriti. A árvore, o “pau enorme” pra lembrarmos a música “A Terceira Margem do Rio”, de Caetano Veloso e Milton Nascimento. O Buriti, falo gigantesco, é quem determina a vida no Buriti Bom, é quem medeia as relações entre as personagens, é quem, ereto, assume a vigilância das manias de cada morador do lugar quando à noite despem-se de seus diurnos trajes morais e entregam-se às necessidades do desejo, da carne e do gozo.
Fora e dentro desse diálogo entre o dia e a noite, destaca-se uma personagem: aquele que escuta todos os sons da noite, o chefe Zequiel.
O chefe Zequiel, ele pode dizer, sem errar, qual é qualquer ruído da noite, mesmo o mais tênue. – “É bem. Ele há-de estar ouvindo, está lá no moinho, deitado mas acordado, a noite inteira, coitado, sofre e um pavor, não tem repouso. Que sabe, na cidade, algum doutor não achava um remédio pra ele, um calmante?” Aziago, o Chefe Zequiel espera um inimigo, que desconhece, escuta até aos fundos da noite, escuta as minhocas dentro da terra. Assunta, o que tem de observar, para ele a noite é um estudo terrível. (Ficção Completa. 2009; p. 702, volume I)
Esse inimigo terrível é o que pode ser? O que diremos é que só o Chefe Zequiel escutava o vento que “aeiouava”. Ele é o que detinha os segredos de todos, todos, todos os seres noturnos. Inclusive aqueles que durante o dia eram a santa e feia, a comportada, a esposa, o fazendeiro, a mulher abandonada e que, à noite transformavam-se. O certo é que no Buriti a pulsão sexual, a pulsão de morte e vida está num constante movimento simbólico sobre o qual se debruçaram vários críticos da ficção rosiana, como Luiz Roncari.
Na obra rosiana, fechando o ciclo de novelas de Corpo de Baile, Buriti, encerra o símbolo dos campos gerais, a árvore seminal, o lugar sagrado das noites do sertão. Junto com Dão Lalalão temos dois textos com um acento de erotismo não visto em Sagarana e fazendo com que o Corpo de Baile seja uma visão mais vertical do sertanejo e de suas vontades. Assim, concluímos a segunda obra de João Guimarães Rosa. Nosso próximo encontro é no Grande Sertão, é no alpendre de Sêo Riobaldo, o fazendeiro do Urucuia.
Não poderíamos terminar essa coluna sem dirigir uma questão à minha amiga Elandia: “Nega, tu leu Buriti?”.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.
Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Perspectivas do Alheio – 01 ano
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Jiní
- Dossiê João Guimarães Rosa – Cara-de-bronze: ‘Duas coisas’
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Conta quem conta
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – O vaqueiro minino
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – A criança paradigma
- Dossiê João Guimarães Rosa – Seguindo a travessia
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Ruminando
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Corpo Fechado
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Sagarana’ – Toda crença tem seu santo
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