terça-feira, 28 de abril de 2015
Vixe Maria!
por Harlon Homem de Lacerda
O título das perspectivas do alheio de hoje seria: “Autor-pessoa, autor-criador, narrador, leitor imanente, co-criador e leitor pessoa”. Na hora que eu vi, lancei a interjeição “Vixe Maria!” e, então, encontrei um título melhor. Explicado isso, vamos em frente: todas essas categorias são motivo de uma confusão grande não só na narrativa, mas na literatura ficcional, ou melhor, essas categorias ajudam a dirimir a confusão que se sempre se acende principalmente quando o texto é narrado em primeira pessoa.
Lembrei agora de uma anedota que já contei diversas vezes e nem sei mais de onde tirei, onde li ou ouvi ou quem me contou, mas ela ilustra bem a confusão de que trato aqui: dizem que Machado de Assis escreveu Dom Casmurro depois de um chifre que levou! Seria hilário se não fosse assombroso o fato de algumas pessoas insistirem em relacionar de forma direta, sem qualquer mediação, acontecimentos biográficos de um autor com determinadas situações ou personagens de um texto. Tudo isso merece nossa atenção e um cuidado de quem se detém mais sobre a narrativa e a literatura.
Autor-pessoa é o ente físico, real, a pessoa que assina o livro, que recebe o dinheiro das vendas, que passa dias e noites acordado tentando escrever alguma coisa, que inventa um mundo, um monte de gente, uma ruma de situações, autor-pessoa é o escritor ou a escritora. Autor-criador é uma instância da narrativa. É o autor-pessoa plasmado no mundo do romance, do conto ou da novela. Ele pode ser completamente diferente do autor-pessoa ou pode ser muito parecido, quase idêntico (no caso da autobiografia, por exemplo), mas nunca é o autor-pessoa. Não pode ser confundido com o homem ou mulher reais.
Outra instância da narrativa é o narrador, diferente do autor-criador e do autor-pessoa. O narrador é detentor do epos, da narração. Aquele que expõe situação, que destrincha o enredo. Pensemos no caso do Dom Casmurro: o autor-pessoa é Machado de Assis, o narrador é Bentinho e o autor-criador é a voz que imprime ironia às palavras de Bentinho, que guia o leitor através das situações fazendo com que conheçamos o que há por trás das próprias palavras de Bentinho. Outro exemplo: Guimarães Rosa é o autor-pessoa, Riobaldo é o narrador, o autor-criador do Grande Sertão: veredas é a instância que nos apresenta, sempre que lemos o livro, o sertão de Riobaldo, o bem e o mal, as lutas, enfim: todo o universo apreensível no Grande Sertão: veredas. Mesmo se perguntássemos a Guimarães Rosa ou a Machado de Assis (numa situação muito hipotética) o que ele “quis dizer” em determinada passagem do livro, ele dará uma explicação superficial que pode ou não condizer com o que ele estava pensando no momento de produção do livro, daí entender que a partir do momento em que a situação imaginada ou planejada pelo autor-pessoa é materializada em texto, em discurso, já estamos diante do autor-criador.
No caso do co-criador, leitor imanente e leitor pessoa a confusão é um pouco menor. Dizemos leitor imanente uma instância da narrativa para quem o autor-criador ou o narrador se dirige durante a narrativa. É muito comum em obras de Machado de Assis, termos a expressão “e você, caro leitor...” etc. etc. E mesmo quando não temos esta fórmula, nós temos uma audiência prevista pelo autor-pessoa, pelo autor-criador e/ou pelo narrador no desenvolvimento da narrativa.
Já o co-criador é o leitor no ato de leitura da narrativa, que vai descobrindo o mundo do autor-criador a cada página virada e vai dando vida a cada personagem, construindo seu próprio entendimento da estória lida. O co-criador é diferente do leitor-pessoa, por que o leitor-pessoa é o leitor em potência, enquanto o co-criador é o leitor em ato. O leitor-pessoa é o ente físico, real, a pessoa que entra na livraria, examina as lombadas, folheia alguns livros, cheira algumas folhas, alisa a capa de um determinado livro com sua mão, pensa nas contas que vai deixar de pagar e compra o livro para se deliciar com a leitura, deitado numa rede ou sentado num gramado.
Depois de ter escritor isso, eu digo de novo: “Vixe Maria! O que eu fiz agora?!” Eu não sei se ajudei a resolver a confusão que mencionei no começo ou se só botei fogo nela. O que eu digo é o seguinte: não é interessante atribuir traços biográficos de um autor para justificar a existência de um livro, sem tomar muito cuidado. De qualquer forma, mesmo que Machado de Assis tenha levado um chifre, Bentinho ou o Dom Casmurro não são o resultado disso. E no final das contas, “chifre é como assombração, geralmente aparece pra quem tem medo” (Falcão).
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.
Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Tempo e Espaço
- A cuspida de Dona Anita
- Alguém aí já ouviu falar de Laurence Sterne?
- Por que eu não li Dom Quixote?
- Perspectivas do alheio
- A hora e a vez
- Quantas vidas cabem numa semana?
- Reinvenção do tempo.
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