Do papel # 30
Texto da Revista Bravo! com os (pela revista considerados) 100 filmes essenciais da história do cinema. Cidadão Kane ocupa o primeiro lugar da lista. Clique nas imagens abaixo para ampliar as páginas da revista.
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Cidadão Kane - Orson Welles
Revista Bravo! Especial 100 Filmes Essenciais da História do Cinema (3ª edição, 2009)
Inventividade formal e narrativa são as chaves que fizeram o filme ocupar o lugar divino no céu da cinefilia
Só mesmo um talento de fora do cinema para revolucionar a linguagem cinematográfica quando esta já se encontrava próxima de ter meio século de existência. Ator desde adolescente, diretor de teatro e de programas de rádio em seguida, Orson Welles encarna todos os estereótipos do gênio precoce. Para arrematar a fama, estreou no cinema aos 25 anos, dirigindo Cidadão Kane, obra que ocupa a posição de Deus no ceú da cinefilia.
Segundo palavras do próprio Welles, o filme “conta a investigação feita por um jornalista para descobrir o significado da últimas palavras de Kane [um magnata da imprensa livremente inspirado no milionário e dono de jornais William Randolph Hearst]. Na visão do repórter, as últimas palavras de um homem devem explicar sua vida. O que talvez seja verdade. Ele nunca chega a descobrir o que Kane quis dizer com a palavra ‘Rosebud’, mas o público descobre. Sua investigação leva-o a se aproximar de cinco pessoas que conheceram bem Kane, que o amaram ou o detestaram. Elas lhe contam histórias diferentes, cada uma de um ponto de vista parcial, de tal modo que a verdade sobre Kane só pode ser deduzida pela soma de tudo o que foi dito sobre ele, como aliás qualquer verdade sobre um indivíduo”. O roteiro engenhoso traz a assinatura de Welles e de Herman J. Mankiewicz.
A sobreposição de diferentes focos é resolvida, na estrutura do filme, por meio da ruptura com padrões bem estabelecidos da indústria, como a narrativa linear, a definição clara da psicologia dos envolvidos e a sobriedade no recurso a simbolismos e extravagâncias visuais. E é essa atitude de desobediência a códigos definidos e a invenção visual e narrativa que transformam o filme numa fabulação cinematográfica da vida de seu personagem em vez de simplesmente uma crônica de fatos pessoais narrada com início, meio e fim.
Além disso, vários elementos formais identificam sua singularidade: o uso dramático da profundidade de campo, o recurso do flashback para narrar distintos pontos de vista de um mesmo indivíduo e a presença visual no teto nos cenários em contraponto à posição baixa da câmera, cujo efeito é ampliar a estatura e o significado dos personagens. As soluções visuais são do genial diretor de fotografia, Gregg Troland.
Já experiente em recursos sonoros depois de seus trabalhos no rádio, Welles também acentuou o visual da obra com efeitos dramáticos, como o barulho da chuva batendo num telhado de vidro, os passos no silêncio da biblioteca e a sobreposição de vozes que transforma em cacofonia as diversas falas que se misturam no tempo.
Nem tudo, porém, se explica pela genialidade de seu diretor. Welles se preparou para a tarefa de sua estreia em Hollywood estudando a linguagem dos clássicos, em visitas frequentes ao acervo da Cinemateca de Nova York. Por todo um ano antes de começar as filmagens, ele visitou bastidores de outras produções para aprender segredos técnicos. Com essa experiência, importou recursos visuais e narrativos que haviam sido usados por outros cineastas, mas deu a eles uma personalidade, uma caligrafia única; em resumo, um estilo.
Radicalidade levou artista ao fracasso
Depois de alcançar o apogeu instantâneo em sua estreia, a carreira de Welles no cinema tomou um rumo errático. O problema maior do artista não foi a falta de talento, mas o excesso.
Apesar de elogiado, Cidadão Kane deu prejuízo a seu estúdio, a RKO. A discordância entre ambição artística e baixo desempenho de mercado determinou dificuldades nos passos seguintes de Welles, que ficaram marcados pela interferência dos produtores em sua concepção autoral.
Seu filme seguinte, Soberba, feito em 1942, teve a montagem original completamente modificada enquanto Welles se encontrava no Brasil filmando It’s All True. Irritado com suas más relações com Hollywood, o diretor exilou-se na Europa em 1948 e nas décadas seguintes produziu irregularmente, contando com a ajuda de amigos e admiradores.
O que não impediu que, mesmo aquém dos resultados de Cidadão Kane, Welles prosseguisse sua revolução em títulos indispensáveis, entre os quais Mr. Arkadin (1955), A Marca da Maldade (1958), O Processo (1962) e Verdades e Mentiras (1974).
Título lidera lista de 100 melhores desde 1962
Lançado nos Estados Unidos em 1941, o culto a Cidadão Kane só começou de fato a partir de 1946, quando chegou à Europa (cujo mercado só se reabriu para produções norte-americanas após o fim da Segunda Guerra).
A partir de 1952, com a iniciativa da prestigiosa revista inglesa Sight & Sound, as principais publicações começaram a produzir suas listas de melhores filmes de todos os tempos, feitas com base em consultas a centenas de diretores e críticos de cinema de todo o mundo. A cada dez anos, ela refaz sua enquete, que mantém o posto de a mais tradicional.
Curiosamente, na lista de 1952, o filme de Welles não se encontra nem entre os dez primeiros. Mas, em 1962, conquista a primazia, lugar que manteve até a última publicada pela revista, em 2002.
A própria Sight & Sound aponta os motivos: “ainda é rebelde ante Hollywood, irônico no tratamento da realidade e da celebridade, reflexivo ao jogar com as convenções cinematográficas e perspicaz na combinação de gêneros, desde a comédia maluca até o primeiro noir”. [Atualizando a informação: na lista de 2012 da Sight & Sound, o Top 50, posterior ao lançamento da Revista Bravo!, Cidadão Kane perdeu o primeiro lugar para Um Corpo Que Cai, de Alfred Hitchcock, de 1958. A estreia de Welles ocupou a segunda colocação]
Cidadão Kane / Citizen Kane
Diretor: Orson Welles
Estados Unidos (1941).
Bravo! Especial - 2009
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