quinta-feira, 8 de janeiro de 2015
Poesia incompleta e irregular
por Amador Ribeiro Neto
Adriana Calcanhotto (Porto Alegre, 1965) é organizadora e ilustradora de Haicai do Brasil (Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014). As ilustrações, centradas em poucas pinceladas, lembram ideogramas dialogando com o traço de Amílcar de Castro. Um belo trabalho. Os haicais selecionados pecam, ao menos por dois motivos: 1. muitos deles já compõem o livro Haicais (São Paulo: Companhia das Letras, 2009), organizado por Rodolfo Witzig Gutilla; 2. a seleção de Adriana Calcanhotto elege haicaístas e haicais duvidosos.
Vamos ao livro. Que haja coincidências entre haicaístas selecionados por Rodolfo Witzig Gutills e os dela, tudo bem. Mas que sejam os mesmos haicais... aí a porca torce o rabo. De fato Adriana leu os haicaístas selecionados em seus próprios livros ou tomou Haicais como parâmetro e adicionou alguns a fim de formar um volume?
A dúvida surge ao se constatar a presença dos mesmos poemas em ambos os livros. É o caso de “na poça da lama” de Afrânio Peixoto. “ao luar” de Monteiro Lobato. “noturno” de Guilherme de Almeida. “jogaste tua ventarola para o céu” de Luis Aranha. “assim sinhá sim” de Pedro Xisto. “gosto tanto de ir ao teatro” e “o pintor ao meu lado” de Drummond. “gota de orvalho” de Érico Veríssimo. “a lua crescente” de Oldegar Franco Vieira. “na poça da rua” e “o pato, menina” de Millôr Fernandes. “lar” de José Paulo Paes. “velha lagoa” de Décio Pignatari. “jardim de minha amiga” de Paulo Leminski. “rede ao vento” de Alice Ruiz.
Há haicaístas que somente Adriana Calcanhotto antologia. E aí poderia residir seu diferencial. O diabo é que ela escolhe poetas duvidosos com haicais mais duvidosos ainda. O caso mais infeliz talvez seja o do haicai que encerra o volume, de Estrela Ruiz Leminski: “infelicidade: / só o teu cachorro / estava com saudade”. Aí vemos o que uma poetisa aprendiz desastrada não faz por uma rima consoante. Rima o óbvio com o duplo óbvio. Mas Estrela Ruiz Leminski, autora do semiequivocado Poesia é não (Iluminuras, 2011), possui um haicai em que brinca com o clichê, extraindo humor do trocadilho com a língua francesa. Talvez pudesse ser este seu haicai escolhido: “um é pouco / dois é bom / très é demais”.
O grande José Carlos Capinan está presente com o incerto: “Não sei tirar tua blusa / Mas quando meu sonho te despe / Tiro hábil tua pele”. Creio que temos aqui apenas um terceto e não um haicai. Mesmo com todas as liberdades concedidas a esta forma japonesa de poesia. Outros nomes que têm haicais constrangedores: Teruko Oda, Paulo Roberto Cecchetti, Mário Quintana (um poeta equivocado), Satori Uso (este dispõe as palavras na vertical e acredita que com isto os versos magicamente ganhem qualidade), Urhacy Faustino, Maria Valéria Rezende, Celso Martins.
Nos acertos estão os haicais de Leminski (todos excelentes), Carlos Verçosa, Glauco Mattoso, Camilo de Lélis, Jorge Fonseca Jr., Jane Ribeiro, Olga Savary (nossa grande haicaísta incompreensivelmente com apenas um poema) e Eunice Arruda.
Senti falta de José Lino Grünewald, Haroldo de Campos, Ricardo Silvestrin, Saulo Mendonça. Todos grandes haicaístas, ainda que, à exceção de Saulo Mendonça, bissextos.
Haicai do Brasil é um livro encantador nas ilustrações. E um projeto feliz que não se realiza a contento. Mas pode ser revisto em edição futura. O posfácio, assinado por Eduardo Coelho, pede leitura obrigatória pelas análises dos haicais, pela fundamentação teórica e pela leveza do texto.
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 02 de janeiro de 2015, p. B-7.
Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.
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