quinta-feira, 18 de dezembro de 2014
Poesia de geometrias
por Amador Ribeiro Neto
Flávio Castro (Porto Alegre, 1966) é poeta e está radicado no Rio desde 1992. Estreia em 2009 com Audito, um livro radical. A sintaxe interrompida forma jatos de imagens. Sobrepõem-se num emaranhado geométrico de sons. Remetem o leitor a telas cubistas. O poema “ideograma” sintetiza o volume: “espaço conlui aglútino silêncio / hermética brancura papírica / voz altiva rápidos lances / sol sóis solstícios / palavra vulva / vácuo negra noite / estrelas entreletras / poço espelha narcíseo solaço / palavra válvula / aracne bússola elíptica / vereda verseja verdes versos / triângulo losango purgo cristal”.
Inaudito (Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2013) é igualmente perturbador. E ainda mais radical. Agora, não há um único poema que não ocupe os amplos espaços em branco da página. Todos movem-se num vaivém de imagens frenéticas, desenhadas no chamariz dos neologismos, da sintaxe truncada, das imagens sobrepostas em fusão de sons e significados.
O requinte poético de Flávio de Castro é fronteiriço, na ousadia, com Mallarmé, Joyce, Haroldo de Campos. Sem esquecermo-nos das inquietações rimbaudianas. Tudo é provocação em alto grau de inventividade. Este poeta conhece a palavra e propõe-se a tirar delas a “alquímica concreção”, como ele mesmo diz. E a busca da imagem é sua meta. Todavia, não tomemos imagem apenas como sinonímia de figurativismo. Ela é usada também como campo que recorta a curva de nível do sonoro.
O poema “Siderespaço” sintetiza a observação acima: “vaza gasoso espaço orbital / vácuo som plugado // xadrestrelas / brilhogaláxio // caos negror / ocaso sonoro / tombos estrobos fúcsios/ siovossibilantes // plexo distante”.
Quer parecer-me que o poeta, na busca foto-cinematográfica da imagem, antes de esculpi-la em ideias e relações interdependentes do pensamento com o referente, vale-se de vasto e amplo leque das sonoridades. Como um Cruz e Sousa reciclado por Haroldo de Campos, ele diz em “Sarcófago”: “templo trêmulo pêndulo / pulsorvo poema // nadavança / dígita distância / centrífuga presença // absolutolhar / palmos esculpidos / despoente arcopovíparo”.
A poesia de Flávio Castro pede um leitor atento e forte. Ela não é feita de concessões às facilidades da poesia palatável, digestiva, para consumo one-way. Ao contrário, sua poesia é cabralina pedra de quebrar dente. Vale para este poeta a lei do esforço, do trabalho árduo e lento com a palavra. Por isto mesmo seus livros exigem um leitor sem pressa, sem vontade de virar a página, sem ansiedade de chegar ao fim.
Uma poesia densa e, por isto mesmo, muito prazerosa em cada revelação. Em cada desnudamento da “Coisa” a que ela se refere. Uma coisa metalinguística, metapoética. Mas também lacaniana. O objeto que não se entrega de imediato. Velado e que só se “a-presenta”, na acepção heideggeriana do termo, depois de um convívio aplicado entre leitor e poema.
Nisto ele é valéryano: só lhe interessa o magro do prato. Nada de adiposidades verbais. Nada além da essência. Este poeta persegue a essência da palavra, da linguagem, da poesia.
Não é por menos que o exigente e igualmente brilhante poeta Mauro Gama referiu-se a ele como “notável poeta”. Notável. Brilhante. Admirável. Possivelmente esta chuva de adjetivações não agradem ao poeta. Mas são elas meu aplauso a seus livros arquitetados num corpo de osso e osso.
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 12 de dezembro de 2014, p. B-7.
Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.
Foto (detalhe): Elisa Guerra
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