quinta-feira, 27 de novembro de 2014
Poesia de osso e tutano
por Amador Ribeiro Neto
Sérgio de Castro Pinto (João Pessoa, 1947) é poeta, ensaísta e professor de literatura na Universidade Federal da Paraíba. Sua poética inclui Gestos lúcidos (1967), A ilha na ostra (1970), Domicílio em trânsito (1983), O cerco da memória (1993), A quatro mãos (1996), Zoo imaginário (2005), O cristal dos verões: poemas escolhidos – 40 anos de poesia (2007).
A flor do gol (São Paulo: Editora Escrituras, 2014) é seu mais recente livro. A obra tematiza, entre outros, o futebol e os bichos. Mas o tema é o menos importante para este poeta. Ele toma o mais corriqueiro acontecimento, o mais óbvio objeto, os mais domésticos animais e adensa-lhes a cor, a textura, o volume, o som, a imagem. Tudo pelo poder restaurador da linguagem.
A palavra é o osso e o tutano desta poesia de estrutura e músculos. Tudo rijo. Porque o poeta não perde tempo com diluições. Nem rarefações. Seu tiro é certo no cerne da palavra.
Se há memória do futebol? Há. Se há trejeitos dos bichos? Há. Se há amor e mordacidade? Há. A melancolia visita a morte em vários poemas. E sempre zombeteira. Alguns de frente. Outros, de soslaio. Jamais trágica. Ele fisga a dor no caniço pensante do coração que ri, qual o “tristíssimo palhaço” de Cruz e Sousa: zombeteiro.
O que conta são as tomadas pictóricas de cenas de fotografias e sequências cinematográficas. As primeiras, não raras vezes congeladas. As últimas, em câmera lenta. Parcas palavras. Vasto campo de visão.
Estrofes curtas várias vezes encerram o poema num único verso. O estampido da surpresa à la Poe é alumbramento para olhos, ouvidos e cabeça do leitor.
Sim, o som e a imagem operam o sentido em engendrado movimento de interação recíproca. Até parece coisa de malabarista. De cancionista. E pode ser: poemúsica.
Não há trem em “Aniversário”, mas ele apita no descarrilhamento das estações. Homero é um fio de tinta esboçado nos “dedos róseos da aurora”. Oswald vem cortante nos “transatlânticos singrando as águas da infância”. Proust transfigurado, é transcriação da poesia em madeleine, o biscoito fino. Por isto mesmo o poema “Intertextualidade” atiça o leitor para o diálogo do poeta com poetas e poemas. Tal como o coração marinheiro de Álvaro de Campos, em “Ah um soneto...”, pulsando agônico em “Urbano”.
Sérgio de Castro Pinto saúda a poesia e o haicaísta conterrâneo Saulo Mendonça ao inserir um haicai dentro dos versos alexandrinos de “Esta lua”: “lua dos haicais, amassada pelas águas. / lua que flagra o súbito peixe-espada / esgrimindo no ar a lâmina prateada”.
Em “O gato e o poeta” as molduras do poema não contemplam apenas os referentes do título. Na dança das fronteiras, o poema vai da vida à morte em lances metalinguísticos desestabilizadores de toda expectativa de ser e saber do leitor.
Quem tiver olho, ouvido, mente e coração abertos se deliciará com a matéria viva e minimalista da poesia anticonvencional de Sérgio de Castro Pinto. O poeta enlaça vida e palavra para erguer a morada da poesia. Tática precisa. Visada certeira. Gol de letra.
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Publicado pelo jornal Contraponto, de João Pessoa-PB. Caderno B, coluna “Augusta Poesia”, dia 21 de novembro de 2014, p. B-7.
Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.
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