por Wellington Bringel
Houve uma época, nas cidades do interior, que a tecnologia ainda não havia disponibilizado as opções de brinquedos e passatempos eletrônicos. Nesse momento de que falo não existia computador, telefone celular e outras engenhocas que facilitam o mundo moderno. A própria televisão era ainda uma novidade que ainda não havia hipnotizado as mentes das pessoas. As crianças brincavam na rua.
Na rua tinha o tempo de tudo. Cada coisa reinava por um momento, até a meninada abusar daquilo, e era sucedida por outra brincadeira, e aquela brincadeira que era abandonada voltava novamente mais na frente. Tinha o tempo do peão, o tempo do triângulo, o tempo das corridas, o tempo da baladeira etc. No tempo das ciriguelas, manga ou caju era tempo de viver trepado nas árvores dos quintais. Quando chegava nos meses com vento mais forte era tempo de soltar pipa, e o futebol era jogado o ano todinho às custas de cabeças de dedos dos pés esfolados nas pedras das ruas sem asfalto.
Houve uma brincadeira, porém, que reinou por alguns anos no gosto da meninada do meu trecho. Foi o tempo de juntar carteiras de cigarro. O negócio começou devagarzinho por ali e de repente virou uma febre no mundo da meninada. E tome menino andando nas ruas do Crato de dia e de noite procurando carteira de cigarro. As carteiras eram cuidadosamente abertas em suas partes coladas e depois dobradas de uma maneira que ficassem parecendo com cédulas de dinheiro. E era isso que elas representavam: simplesmente dinheiro. O valor de cada marca de cigarro era o valor simbólico, para nós, proporcional à dificuldade de se encontrar aquela marca pelas ruas. Assim, as carteiras de Clássicos e Arizona (cigarros baratos, sem filtro), que eram achados facilmente nas calçadas de bares e em praças, valiam, comparando com a moeda de hoje, um real. Continental, um cigarro popular mas que pelo menos tinha filtro, valia cinco reais. Hollywood valia dez reais. Minister valia vinte reais. Carlton e Hilton valiam cinquenta reais. E havia os cigarros importados como Marlboro, Kent, Benson & Hedges etc., difíceis de encontrar, que valiam cem reais.
Esse dinheiro tinha valor dentro da sociedade dos meninos. Tinha lastro. Com esse dinheiro os meninos movimentavam uma micro economia só deles. Com esse dinheiro compravam brinquedos uns dos outros, revistas, lanches e tudo o mais que um menino considerasse seu e pudesse vender. Eu, que na sociedade real não nasci exatamente num berço de ouro, vi naquele negócio uma oportunidade de ter um tanto de coisas que a minha mãe não podia comprar para mim. E eu trabalhava duro. Passava no mínimo três horas do meu dia andando pelas ruas de olhar fixado no chão procurando carteiras de cigarro.
Rapidamente juntei considerável número de carteiras que encheram algumas caixas de sapato. Continuei “trabalhando” e logo precisei dispor de uma mala. Mais à frente esvaziei um velho baú que tinha lá em casa para também enchê-lo de carteiras de cigarro. Quando esses objetos não estavam mais comportando a fortuna, comecei a encher o guarda roupa de minha mãe, que não aceitou aquilo porque as roupas dela estavam ficando impregnadas do cheiro de cigarro, coisa que ela detestava.
Além de trabalhar duro, eu também conhecia os atalhos e os caminhos das pedras. Eu descobri que os lixos dos poucos hotéis existentes no Crato, na época, eram verdadeiras minas de carteiras de cigarro importados (os mais valiosos), que eram trazidos pelos viajantes comerciais que vinham de outros estados. Quando comecei a aparecer com um considerável número dessas carteiras, os outros meninos passaram a me seguir para descobrir o mapa da mina. Despistei como pude mas eles acabaram descobrindo tudo. Só que eu havia partido na frente e tinha bem mais importadas do que eles.
Havia também um tipo de cigarro especial, raríssimo, que era fabricado exclusivamente para ser distribuído gratuitamente com os funcionários da Souza Cruz. Essas carteiras vinham com a gravura de uma grande estrela de cinco pontas, parecido com aquelas de xerife, e com as palavras “PROIBIDA A VENDA” impressas. A Souza Cruz, no Crato, tinha apenas uns cinco funcionários. Essas carteiras de uso exclusivo deles, espécie de cortesia da empresa, eram portanto difíceis de se achar na rua. Ficou acordado que uma “proibida a venda” (era assim que a gente chamava aquelas) valia duzentos reais. Ocorre que quase vizinho à minha casa morava um funcionário da Souza Cruz. Era Seu Araújo. Seu Araújo todo dia me dava uma daquelas “proibida a venda”. Pedi para que ele também trouxesse as carteiras do seus colegas de trabalho. Ele me deu várias por algum tempo. Mas logo os outros meninos também descobriram e passaram a assediar os funcionários da Souza Cruz. Só que mais uma vez eu havia partido na frente.
Eu já era um milionário. Mas a grande jogada que me fez entrar para o seleto grupo dos bilionários da revista Forbes aconteceu quando eu tive a ideia de montar um Cassino. Um dia, brincando na casa de um menino lá do trecho, eu vi jogado num canto do quarto um brinquedo que era uma miniatura de um Cassino. Consistia de uma mesinha com uma espécie de papelão plastificado com onze números, de dois a doze. Tinha também dois dados e um tanto de fichas. Perguntei se ele vendia o brinquedo e ele falou que vendia por mil reais (esses valores falo para que se possa ter uma ideia da coisa, evidentemente que naquele tempo não havia o real). Vendia por mil reais e ainda com a condição de que eu pagasse com carteiras importadas e proibidas a venda.
Aquilo era uma mixaria pra mim. Fechei negócio. “Aluguei” a garagem da casa de um outro menino e instalei o Cassino Fluminense. Na primeira noite já ganhei o valor do investimento multiplicado por vinte. Os meninos compravam as fichas e apostavam em um ou mais números. Eu jogava os dois dados e a soma que eles davam indicava o número vencedor. Evidentemente só um número ganhava e os outros dez perdiam. Um verdadeiro negócio da China. Ao vencedor eu pagava o valor apostado multiplicado por seis. E muitas vezes ninguém ganhava, quando dava um número que ninguém apostou.
O sucesso do Cassino Fluminense em grande parte se deu pela credibilidade que a casa tinha de poder pagar os prêmios. Outros meninos tentaram copiar a ideia mas não tinham cacife para conquistar a credibilidade dos desconfiados apostadores. Como acontece com o jogo de azar em geral, os meninos ficaram meio viciados e em poucos meses eu quintupliquei minha fortuna. Ganhei muito dinheiro. Eu era agora O MENINO MAIS RICO DO CRATO. Comprava o que queria dos meninos. Comprava inclusive proteção de meninos mais velhos e mais fortes, para me defender dos que não iam muito com a minha cara. No auge da minha fortuna cheguei a comprar uma bicicleta usada por trinta mil reais. Passei uma semana com a bicicleta até que a mãe do menino descobriu o negócio e foi lá em casa buscar a bicicleta e nem devolveu minhas carteiras de cigarro. Queimou trinta mil reais. Mas eu ganhava aquilo em duas noites.
Tudo corria bem até que Diógenes, um menino que já estava entrando na pré-adolescência e que já não estava vendo tanta graça naquelas coisas, já estava pensando em namoradas e outras coisas, resolveu apostar todas as carteiras dele de uma vez. Ele me desafiou a apostar a fortuna dele, que era considerável, se eu pagasse dez vezes o valor apostado. O meu orgulho e o silêncio que os meninos fizeram quando ele lançou o desafio me fizeram entender que eu não poderia recusar o duelo. Ninguém apostou mais naquela rodada. Fizemos os cálculos do valor das carteiras dele e eu não tinha fichas suficientes para atender tal valor. Ficou calculado em cerca de cento e vinte mil reais. Caso eu perdesse teria que pagar um milhão e duzentos mil reais.
Ele caprichosamente apostou tudo no primeiro número do jogo. Apostou tudo no número dois. Eu propus a ele lançar um dado de cada vez. Ele falou que por ele tudo bem. A frieza dele estava me deixando nervoso. Se o primeiro dado desse qualquer número diferente de um eu já ganharia. O primeiro dado foi lançado e deu o número um. A tensão subiu assustadoramente. Tudo estava agora por um dado. Minha cabeça era um torvelinho de pensamentos. Diógenes, de maneira assustadora e irritante, parecia não estar nem aí. Tive que lançar o segundo dado e pareceu uma eternidade até que ele parasse de girar e... parar... marcando o número um.
Em um milionésimo de segundo percebi que havia perdido um terço da minha fortuna material. Meio tonto fui até minha casa pegar o valor a ser pago. Diógenes havia quebrado a banca. Tive que pedir ajuda a dois amigos pra me ajudar a trazer a mala e algumas caixas de sapato cheinhas de “dinheiro”. Caprichosamente dei um jeito de não pagar nenhuma carteira importada e nem “proibida a venda”. Demorei pra contar o valor a ser pago e chegou um menino lá em casa dizendo que Diógenes estava dizendo que eu não voltaria com a grana. Aquilo mexeu com meus brios. Voltei lá e praticamente joguei as carteiras nos pés dele, mesmo correndo o risco de levar uns cascudos, pois ele era bem maior do que eu.
Depois desse prejuízo fui pegando uma maré de azar e tendo outros prejuízos consideráveis, embora ainda ganhasse mais do que o que o que perdia. Mas estava perdendo o gosto pelo negócio. Os meninos também foram começando a enjoar daquele negócio e o Cassino Fluminense teve o seu ocaso. Já não tinha encanto suficiente para concorrer com Durango Kid, Perdidos no Espaço, Nacional Kid, Daniel Boone, Bonanza e outras atrações em preto em branco da, agora sim, hipnotizante televisão.
Durante muitos anos conservei minhas carteiras de cigarro guardadas em uma espécie de despensa que havia lá em casa. Um dia, quando já estava trabalhando em uma cidade próxima do Crato, cheguei em um final de semana e descobri que minha mãe havia jogado tudo no lixo.
____
Wellington Bringel é bancário e escreve por passatempo.
Ilustração: Reginaldo Farias.
.
Nenhum comentário:
Postar um comentário