por Amador Ribeiro Neto
Não sou um especialista propriamente dito. Gosto de poesia. Gosto da sua companhia. E gosto de pensá-la, sempre que instigado. Este livro, que reúne toda a poesia de Leminski, incluindo poemas inéditos, instigou-me.
Lembro-me de aguardar, na década de 80, cada novo livro deste polaco-curitibano irreverente & criativo. Desde meados da década anterior ele já publicava em Curitiba, mas seus livros não chegavam ao eixo Rio-São Paulo. Foi através de Caprichos e relaxos (1983) que travei contato com sua poesia pela primeira vez.
O livro promoveu um revertério em minha cabeça. Ela vivia cheia de poesia marginal, dentre outras facilidades e chatices dos anos 70 e 80.
Claro, todos os poetas marginais que conheço reivindicam Leminski como um dos seus pares. E não só: abarcam Glauco Mattoso e Waly Salomão também. Um fato inegável: estes poetas marginais sempre foram ruinzinhos de poesia. Sem dúvida. Outro fato inegável: eles sempre foram fortes na retórica. Não há como negar.
Mas insisto: Leminski, Glauco e Waly não são poetas marginais. Apenas estão inseridos aí pela linha cronológica. Isto não quer dizer nada. Ou vamos agora afirmar que João Cabral pertenceu à Geração de 45? Aos aristotélicos, adeus.
Leminski não é poeta marginal. Antes: é um poeta do rigor. Do rigor tão bem estruturado que chega a parecer relaxamento. A este domínio da arte de fazer poesia bem elaborada, dando a impressão de facilidade, dá-se o nome de “consciência de linguagem poética”. Leminski sabia onde pôr o seu boné.
Depois de Caprichos..., passei a aguardar ansiosamente cada publicação sua. Neste livro de estreia já aparecem poemas que mais tarde serão reconhecidos como a logomarca da linguagem de Leminski. É o caso de
Domingo
Canto dos passarinhos
Doce que dá pra pôr no café
O haicai capta o lirismo que brota da natureza. E o lança pra desabrochar na xícara de café. Manhã dominical na cidadezinha do interior? Por que não um diálogo com Bashô e Drummond?
Ou este antiecológico, politicamente incorreto e ultra corrosivo:
Gente que mantém
pássaros na gaiola
tem bom coração.
Os pássaros estão a salvo
de qualquer salvação
Fina irreverência que fura fundo na hipocrisia dos ambientalistas. Afora a leveza da liberdade “a salvo de qualquer salvação”. Desconstrução: o vocábulo “salvo” está contido em “salvação”. A síntese como congraçamento da tese e da antítese. Ironia dialética pra marxista nenhum botar defeito. Ao menos os mais avisados. Claro.
Em Caprichos... há um belíssimo jogo de olhares e espelhos. Reflexos de intimidades do olho-no-olho. E revelação súbita da cumplicidade poética:
Eu
quando olho nos olhos
sei quando uma pessoa
está por dentro
ou está por fora
quem está por fora
não segura
um olhar que demora
de dentro do meu centro
este poema me olha
Cumplicidade de vida e linguagem. Melhor dizendo: de obra que se desdobra em metalinguagem. Leminski brinca, sabendo que brinca. Lição para quem se propõe a fazer poesia leve, coloquial, lúdica, antiacadêmica. Leminski é Mestre.
Ao final do volume encontramos a parte intitulada “Sol-te”. Aí o poeta nos dá sua visada antropofágica da Poesia Concreta, da Poesia Visual, e da canção em si. Além de manter a irreverência crítico-criativa. Como nesta interação entre poesia e música popular:
tudo
que
li
me
irrita
quando
ouço
rita
lee
que
li
me
irrita
quando
ouço
rita
lee
Logo veio Distraídos venceremos (1987), já no título uma rajada mega irônica ao “slogan” sindical mais divulgado na época. Anárquico, o poeta sabia da necessidade do caos para o surgimento do acaso. Ao “unidos” contrapõe o “distraídos”. Não é à toa que um dia saiu-se com esta: a poesia é um “inutensílio”. Neologismo conceitual brilhante. Síntese conceitual teórica de tirar o chapéu. Curso de teoria da literatura numa só palavra.
Distraídos venceremos inicia-se com o poema “aviso aos náufragos” em que, com leveza, ele repassa a história da poesia e termina com uma tirada inesperada sobre o que é a vida. Para este poeta, vida e obra são uma coisa só. Coisa que quase todos querem fazer. Mas só a alguns é dado consegui-lo. E o clima deste livro está bem representado em:
eu, hoje, acordei mais cedo
e, azul, tive uma ideia clara.
só existe um segredo.
tudo está na cara.
Poesia publicada postumamente
La vie en close, embora publicado em 1991, reúne poemas selecionados por Leminski e Alice Ruiz em 1988, um ano antes da morte do poeta. Este procedimento já fora adotado por ambos em 1987, quando decidiam quais poemas integrariam Distraídos venceremos.
Neste livro encontramos vários poema-valise, tão presentes na obra de Leminski:
A quem me queima
e, queimando reina,
valha esta teima.
Um dia, melhor me queira.
Mais que as rimas consoantes (queima, teima), a frequência da rima em ditongo EI (queima, reina, teima, queira) que dá origem à bela rima toante (reina, queira) em que a vogal tônica camufla-se no ditongo, como um intervalo, um espaço, um hiato. Coisa de poeta que sabe e sabe que sabe. Por isto faz.
Há também este poema em prosa, que melhor seria dizer teoria da poesia em prosa poética. As citações entrelaçam-se em intertextualidades que tecem o poema que nasce – lenta luta, manhã por vir. O título já fornece a chave do poema: “limites ao léu”:
POESIA: "words set to music" (Dante via Pound), "uma viagem ao desconhecido" (Maiakovski), "cernes e medulas" (Ezra Pound), "a fala do infalável (Goethe), "linguagem voltada para a sua própria materialidade" (Jakobson), "permanente hesitação entre som e sentido" (Paul Valéry), "fundação do ser mediante a palavra" (Heidegger), "a religião original da humanidade" (Novalis), "as melhores palavras na melhor ordem" (Coleridge), "emoção relembrada na tranquilidade" (Wordsworth), "ciência e paixão" (Alfred de Vigny), "se faz com palavras, não com idéias" (Mallarmé), "música que se faz com idéias" (Ricardo Reis/ Fernando Pessoa), "um fingimento deveras" (Fernando Pessoa), "criticism of life" (Mathew Arnold), "palavra-coisa" (Sartre), "linguagem em estado de pureza selvagem" (Octavio Paz), "poetry is to inspire" (Bob Dylan), "design de linguagem" (Décio Pignatari), "lo imposible hecho posible" (García Lorca), "aquilo que se perde na tradução" (Robert Frost), "a liberdade da minha linguagem" (Paulo Leminski)...
O ex-estranho (1996) teve seleção e organização de Alice Ruiz S e Áurea Leminski. A segunda parte do livro intitulada “Parte de AM/OR” reúne poemas inéditos que Alice e Leminski fizeram um para o outro. Estavam guardados numa pasta íntima que o casal mantinha. Coisas de apaixonados. Coisas de casal de poetas apaixonados, pode reivindicar-se. Pode ser. Mas a verdade é que são poemas de qualidade duvidosa. Como este:
ah se pelo menos
eu te amasse menos
tudo era mais fácil
os dias mais amenos
folhas de dentro da alface
mas não
tinha que ser entre nós
esse fogo
esse ferro
essa pedreira
extremos
chamando extremos na distância
Aqui percebemos uma inconsistência na linguagem poética. Uma fratura no cuidado com que Leminski tratava a palavra. Fica valendo a “intenção” do amor. Mas, pra se transformar em poesia, precisa passar por um bom distanciamento dos sentimentos expostos. Emoção não é sinônimo de poesia, como doutrinam certos advogados do diabo. Emoção, em si, é inimiga da poesia. Emoção trabalhada como forma de expressão poética é outra coisa. Esta outra coisa se chama poesia.
Winterverno foi publicado em 2001 com desenhos de João Suplicy. Reúne poemas já publicados e outros inéditos. Este livro é reproduzido em Toda poesia sem os desenhos e apenas com os poemas inéditos. Destacamos “a hora do tigre”:
um tigre
quando se entigra
não é flor
que se cheire
não é tigre
que se queira
ser tigre
dura a vida
inteira
O poema parece dialogar com “Aos predadores da utopia”, de Lau Siqueira, que cito a seguir:
dentro de mim
morreram muitos tigres
os que ficaram
no entanto
são livres
Em comum, além da temática do tigre, que perpassa a história da poesia da Antiguidade Clássica a Blake, o tema da liberdade. Blake: “Tyger! Tyger! burning bright / In the forests of the night, / What immortal hand or eye / Could frame thy fearful symmetry?”. Na tradução de Augusto de Campos: “Tygre! Tygre! Brilho, brasa / que a furna noturna abrasa, / que olho ou mão armaria / tua feroz symmetrya?”.
No poema de Leminski, a liberdade aparece iconizada pela espacialização dos vocábulos. No de Lau, através do jogo do dístico com o terceto – e no salto de versos de quatro, seis, quatro, três e duas sílabas poéticas. Um movimento que remete ao vaivém dos versos de Leminski. E ambos, aos passos e pulos do tigre/da liberdade.
Ao compor de Caprichos e relaxos, Leminski não incluiu todos os poemas que publicara em Polonaises nem em Não fosse isso e era menos não fosse tanto e era quase, dois breves volumes da saga editorial curitibana. Pois bem, as organizadoras de “Toda poesia” decidiram incluir tais poemas sob o título de “Poemas esparsos”. Não foram muito felizes ao fazer o que Leminski não quisera fazer. Há poemas que se valem de um trocadilho constrangedor. Certamente Leminski se deu conta disto. Assim, não os incluiu no livro que a Editora Brasiliense tornaria um best-seller. Vejamos:
Vão é tudo
Que não for prazer
Repartido prazer
Entre parceiros
Vãs
Todas as coisas que vão
A bem da verdade, a primeira quadra até que apresenta algum interesse na reiteração da aliteração do /p/ e do /r/ repartindo o prazer entre parceiros. Mais que isso: introduzindo o vão (substantivo) como espaço entre os vocábulos, mesmo ao negá-lo; “Vão é tudo / Que não for...”. A construção pela desconstrução, outro procedimento caro a Leminski, é bem realizada aqui. Todavia, a quadra seguinte (um dístico) assenta-se sobre a pasmaceira de um trocadilho tolo: vãs/vão. O poema conclui-se mal. Se fosse constituído apenas da primeira estrofe, seria um bom poema. Não é.
Ou este outro, com um refrão desanimador:
maldito
o que não deixa cantar
o canto é fraco
maldito
o que não deixa cantar
o canto é forte
maldito
o que não deixa cantar
o canto gera outro cantar
maldito
o que não deixa cantar
o canto nunca deixa de cantar
Vejamos este outro, bem ao modo de quem começa a fazer poesia:
no campo
em casa
no palácio
está nas últimas
a última flor do lácio
cretino
beócio
palhaço
dê o último adeus
à última flor do lácio
a fogo
a laço
ninguém segura
a queda da última flor do lácio
Mas, reconheço, há bons poemas também. Este, brilhante, que foi musicado por Arnaldo Antunes:
acenda a lâmpada às seis horas da tarde
acenda a luz dos lampiões
inflame
a chama dos salões
fogos de línguas de dragões
vaga-lumes
numa nuvem de poeira de neon
tudo é claro
tudo é claro
a noite assim que é bom
a luz acesa na janela lá de casa
o fogo
o foco lá no beco
e o farol
esta noite vai ter sol
Eis Paulo Leminski: alguns escorregões, como qualquer poeta. Mas, acima de tudo, acentuada consciência de linguagem. E grande rigor poético. Tudo com a leveza que poucos conseguem. Ler Leminski é um imperativo lírico.
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Amador Ribeiro Neto é poeta, crítico literário e de música popular. Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Professor do curso de Letras da UFPB.
Publicado pelo Correio das Artes, suplemento cultural do jornal A União, de João Pessoa, que circulou dia 10 de agosto de 2014, com data de junho-julho/2014. Ano LXV, nºs 4 e 5, p.23-26.
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