quarta-feira, 22 de janeiro de 2014
22 de janeiro de 1914: a tropa do major Ladislau foge para Barbalha
Há exatos 100 anos os romeiros e jagunços do padre Cícero atacaram a coluna liderada pelo major Ladislau, que acampados próximos ao valado de Juazeiro aguardavam o momento certo de atacar a "tropa" de padre Cícero. Apesar do poderio amedrontador de um canhão (que funcionava de forma risível), as tropas rabelistas usaram uma antiga e genuína tática de guerra: a do salve-se quem puder.
"Nos valados, comentava-se que poucas horas antes de morrer a beata se oferecera a Deus em sacrifício. Dera sua vida, de bom grado, pela salvação do povo de Juazeiro. Ninguém duvidava que naquele instante Maria de Araújo estaria no Céu, sentada em um trono de luz ao lado de Jesus Cristo e de Nossa Senhora das Dores. Com certeza, ela também ajudaria a proteger a todos do fogo, da bala de rifle e do tiro de canhão. Naquela noite, até os mais perversos dos jagunços entoaram os chamados cantos de sentinela, os hinos religiosos com os quais os beatos encomendavam a alma dos moribundos à Virgem:
Oh! Mãe Gloriosa,
Oh! Mãe do Juazeiro,
Oh! Mãe virtuosa,
Oh! Mãe dos romeiros!
Tem uma beata santa,
Na matriz do Juazeiro,
Meu Padim Ciço Romão
É rei do mundo inteiro!
Parecia o ronco de um trovão. Só que não vinha do céu, mas do fundo da terra. O estrondo foi tão forte que sacudiu as folhas das árvores. Imediatamente depois, ouviram-se o chiado e longo assobio no ar. Quando o projétil passou chispando sobre a trincheira, os juazeirenses entenderam o que se passava. O canhão de Franco Rabelo estava atirando contra eles. Uma, duas, três, quatro, cinco vezes. Era ensurdecedor, de perder o juízo.
A despeito de tão assombroso barulho, o alcance dos arremessos mostrou-se bem menor do que se imaginava. Um ou outro disparo alcançava certa altura e a bola de chumbo quente passava zunindo por sobre o telhado das casas localizadas mais próximas ao valado. Não ia muito além disso. O efeito era mais de ordem moral do que bélico – e só logrou sucesso após os primeiros rugidos. Em poucos minutos, percebendo que a anunciada arma mortífera fazia mais zoada do que estragos, os jagunços começaram a se divertir com a balbúrdia.
"Xô, maldita!", gritavam eles, entre gargalhadas, a cada novo disparo que voava sobre a cabeça deles.
O canhão de Emílio Sá se revelara um espalhafatoso malogro. Dias antes, logo que a Guarda Cívica chegou ao Cariri, fora feito o primeiro disparo de teste, com pólvora seca, ainda nas ruas do Crato. O resultado havia sido o mais desastroso possível. O coice provocado pelo disparo fez o canhão praticamente desintegrar a carroça de madeira no qual estava assentado. Ao mesmo tempo, subira uma imensa fumaceira. Quando a fumaça baixou, constatou-se que a força do baque havia feito o canhão virar ao contrário. A boca de bronze estava apontando para o lado oposto. Muitos soldados interpretaram aquilo como um sinal: Deus talvez quisesse mostrar que quem atacava o Padim Ciço acabava sendo vítima do próprio veneno.
O canhão foi tirado de sobre os destroços da carroça e providenciou-se para ele um estrado com rodas de ferro, antes de ser mandado para a frente de combate. O major Ladislau estava consciente de que, com aquela geringonça, não iria conseguir atingir as torres da capela do Juazeiro. No máximo, a barulheira infernal iria assombrar a jagunçada do padre Cícero. Portanto, era exatamente essa a intenção dos disparos que estavam sendo feitos contra as trincheiras, naquela investida a partir do sítio Macacos, a poucos metros de distância do valado. Em 21 de janeiro de 1914, uma quarta-feira, após pouco mais de uma semana de cerco, Ladislau resolvera contrariar a resolução oficial de prolongar o bloqueio e ordenou o ataque com uma coluna avançada. Seu contingente estava reforçado pela Guarda Cívica, por dezenas de cabras cedidos por coronéis rabelistas e por cerca de vinte sentenciados da Justiça, que se encontravam presos na cadeia do Crato mas foram postos em liberdade em troca do engajamento no conflito.
Do outro lado da trincheira, Floro ordenou que ninguém revidasse. Fizessem silêncio. Deixassem os soldados esgotarem ao máximo a munição. Os policiais estranharam a ausência de revide e começaram a desfechar pesadas cargas de fuzil contra o valado. Novamente, ninguém respondeu. Ao anoitecer, Ladislau deu ordem de cessar fogo. Estava intrigado pela completa falta de reação. Mandou erguer acampamento e foi se regalar com uma garrafa de cachaça que havia trazido no alforje. Dormiriam ali mesmo, em pleno teatro de guerra, para fazerem uma investida no terreno inimigo na manhã seguinte.
Mas não houve manhã seguinte. Na madrugada, os jagunços de Floro Bartolomeu escalaram a trincheira, ultrapassaram o fosso, esgueiraram-se pelo solo e, protegidos por trás de pedras e de um espesso bambuzal, deram bom-dia aos homens de Ladislau em 22 de janeiro, quinta-feira, com tiros quase à queima-roupa. A debandada foi geral. A tropa recuou como pôde, trocando tiros e arrastando o canhão que passara a ser um fardo inútil, mas cujo simbolismo recomendava não deixa-lo cair na mão do inimigo.
De quando em vez, ouvia-se o brado:
"Viva Franco Rabelo!"
Os soldados se aproximavam desordenadamente, julgando que reforços estavam chegando. Mas eram novamente surpreendidos pelos jagunços e romeiros, que na verdade os atraíam para ciladas e depois urravam o verdadeiro grito de guerra:
"Viva o Padim Ciço!"
Seguia-se a saraivada de balas. Nem mesmo quando conseguiam livrar-se temporariamente do contra-ataque e se acantonavam em algum lugar próximo, os homens de Ladislau tinham algum instante de sossego. Encurralados , assistiam terrificados às chuvas de objetos estranhos que caíam sobre o acampamento improvisado. Eram contas de rosário, pedaços de chifres de animais e lascas de velas derretidas lançados em disparos de bacamartes sobre eles.
"Segura isso, soldado do Cão!", gritavam os jagunços.
"Toma, macaco do Rabelo!", ouvia-se.
Aquilo assustava mais do que o barulho do tiro. Os soldados ficavam apavorados com a mandinga e fugiam para o fundo do mato.
Às 11 da manhã, um ainda ressacado major Ladislau conseguiu reunir a tropa – ou o que restara dela – e logo depois ordenou a retirada em direção à cidade de Barbalha. Os oficiais quiseram saber se ele não se enganara, se a ordem não seria dirigir a coluna de volta para o Crato. Ladislau gritava que não, com os olhos vermelhos e esbugalhados. O destino era mesmo Barbalha. Não iriam prosseguir o cerco. Estavam batendo em retirada definitiva. Era chegada a hora do salve-se quem puder.
Em Barbalha, o major subiu numa calçada mais elevada e falou aos homens que o haviam acompanhado:
"Camarada, é triste confessar; mas o padre Cícero ganhou a guerra."
Ao ouvirem aquelas palavras da boca do comandante, os soldados começaram a despir as fardas e as empilharam no chão.
Ladislau deu-lhes um último conselho:
"Deus é grande, o padre Cícero é maior. Mas o mato é maior ainda do que os dois juntos. Cada um cuide de si e ganhe o matagal.""
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Trecho escrito por Lira Neto e extraído do livro Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão (Companhia das Letras, 2009)..
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