Começou 2014, ano em que Juazeiro do Norte e a Região do Cariri lembrarão o centenário de diversos fatos históricos ocorridos em 1914. Aquele ano foi decisivo para a atuação política do Padre Cícero e de toda a região, quando caririenses (e nordestinos de outras localidades) formaram um exército que combateu em prol da propalada "Sedição de Juazeiro" (título discutível para muitos).
O falecimento da Beata Maria de Araújo, a elevação de Juazeiro à condição de cidade e a criação da 1ª Comarca do município também são dignos de menção. Mas por ora nos deteremos a um fato ocorrido exatamente no primeiro dia de 1914. Juazeiro vivia um tenso período, após a deflagração do conflito armado entre as tropas rabelistas (do então Presidente do Ceará, Franco Rabelo) e o exército de jagunços e cangaceiros arregimentado pelo Dr. Floro Bartolomeu, que defendia o Juazeiro e o Padre Cícero.
Um fato relevante ocorrido naquele 1º de janeiro de 1914 merece menção, e transcrevemos a sua narração feita pelo autor cearense Lira Neto:
"No primeiro dia de 1914, menos de duas semanas após o [primeiro] ataque [das tropas de Franco Rabelo], Cícero consentiu que um oficial do Exército tivesse acesso ao Juazeiro, na condição de observador neutro. Vindo de Fortaleza, o tenente José Armando Perdigão de Oliveira se apresentou como enviado da inspetoria da Região Militar sediada no Recife. Tinha como incumbência remeter ao Rio de Janeiro um relatório detalhado a respeito das reais circunstâncias em que se dera a conflagração. Na capital federal, as notícias publicadas pela grande imprensa acusavam Cícero de ter liderado uma chacina.
'No flagelado sertão cearense, terrível como a seca, explode uma guerra civil dirigida por um sacerdote', repudiava a revista Careta, uma das mais críticas e mais lidas à época, em sua edição especial de Natal.
Enquanto em todas as outras terras cristãs ondulam incensos e soam bênçãos e preces, num pedaço do Ceará filhos de Cristo em luta contra filhos de Cristo mancham de sangue a terra brasileira, porque um padre, trocando as promessas do céu pelas coisas da terra, transviou para as baixezas da política os homens que deveria ter encaminhado para os esplendores da religião.
Cícero estava preocupado com a repercussão negativa do episódio. Em sinal de cortesia e boa vontade, recebeu o tenente Perdigão de Oliveira em casa, durante um jantar, quando argumentou que o Juazeiro apenas se defendera de um ataque criminoso desfechado pela polícia militar estadual. Cícero aproveitou o ensejo para reafirmar a fidelidade política ao Palácio do Catete e disse que bastava um gesto explícito de reprovação do presidente Hermes da Fonseca — ou a intervenção federal no Ceará, com o consequente afastamento de Franco Rabelo — para depor imediatamente as armas.
Desconfiado das verdadeiras intenções do visitante, Floro se intrometeu na conversa e achou que era conveniente dar uma demonstração de força ao oficial, que bem poderia se tratar de um espião inimigo. O doutor, que mandara telegramas de congratulações de Ano-Novo a Hermes da Fonseca assinando 'Floro Bartolomeu da Costa, presidente do Ceará', interrompeu o jantar e avisou que organizara um desfile para mostrar ao tenente Perdigão o poderio militar do Juazeiro. Floro explicou que no meio-tempo entre o ataque da polícia e aquela data, 1º de janeiro, a cidade recebera ainda mais voluntários e alistara novos homens de toda a região para reforçar as trincheiras. Perdigão de Oliveira teve então a oportunidade de passar em revista a tropa mais singular na qual já pusera seus olhos de oficial do Exército brasileiro.
A 'parada militar' preparada por Floro era desconcertante para os padrões de um soldado profissional. Compunha-se de cerca de 3 mil cabras, jagunços e cangaceiros, armados de rifles, fuzis, pistolas e bacamartes, mas também de cacetes e longos punhais que mais se assemelhavam a espadas. Muitos traziam costurados na aba do chapéu de couro, como enfeites, espelhinhos redondos e fitas vermelhas, além de medalhinhas com a efígie de Cícero pregadas na blusa à altura do peito para garantir proteção. Em vez de uniforme, vestiam desgrenhadas roupas civis. No lugar de rosto escanhoado e cabelo militar à escovinha, traziam barba malfeita, bigode espesso e cabelo em desalinho. Em vez de coturnos, usavam botas de vaqueiro ou simples alpercatas. Gritavam vivas ao Padim Ciço e xingamentos contra os 'macacos', o apelido com o qual os jagunços e cangaceiros se referiam aos policiais.
O tenente Perdigão, ciente do estrago que uma horda como aquela poderia fazer em um campo de batalha, explicou a Cícero que sua visita se devia a uma tentativa governamental de selar a paz entre o Juazeiro e Franco Rabelo [então presidente do Ceará, oficialmente]. Floro meteu-se mais uma vez na palestra. Expressou abertamente seu estranhamento ao tenente Perdigão: não havia recebido nenhum aviso dos correligionários do Rio de Janeiro a respeito da chegada de um emissário de paz. Também não via nenhuma sentido em selar um armistício àquela altura dos fatos. O governo federal sabia como evitar novos confrontos: bastava decretar a intervenção no Ceará. Do contrário só restava mesmo aguardar a polícia de Rabelo com a espingarda na mão.
'Esta paz que o senhor está falando, tenente, não nos interessa. Ela ia significar apenas o nosso desarmamento e a continuação de Franco Rabelo no poder. Nada feito', rejeitou Floro, convidando o tenente a deixar a cidade.
Horas depois, o mesmo Perdigão reunia-se no Crato com o comandante Alípio de Lima Barros. Contou com detalhes o que vira no Juazeiro e desaconselhou que, em tais condições, fosse feito um segundo ataque. Se com ampla superioridade numérica as tropas da polícia haviam se submetido a uma vexatória derrota,com os novos reforços obtidos por Floro a tarefa de invadir a cidade do padre Cícero se tornara simplesmente impossível. Seriam necessários, pelo menos, uns 4 mil soldados bem armados para desalojar a jagunçada por trás dos valados, calculou Perdigão.
Alípio repassou as informações para o Palácio da Luz, em Fortaleza. Franco Rabelo, porém, não as levou em maior consideração. Chamou Alípio à capital, destituiu-o do comando das tropas e avisou que acabara de promover o capitão Ladislau Lourenço a major. A ofensiva contra o Juazeiro iria continuar. Mas, a partir daquela data, com novo chefe. O major Ladislau não iria tremer dentro das calças. Esmagaria os inimigos como piolhos. Ofendido, Alípio lançou fora as insígnias do boné, arrancou os galões da farda de coronel da polícia cearense e zarpou para a capital federal.
'O Ceará está anarquizado', definiu Alípio em entrevista ao jornal O Imparcial, do Rio de Janeiro.
Enquanto isso, no Crato, os soldados recebiam litros de cachaça como estímulo, após Ladislau reuni-los e anunciar que em breve iriam desferir um segundo ataque. Não desanimassem. Para ajudá-los, estava chegando a da capital uma arma poderosa, que definiria a guerra a seu favor, prometeu."
E o desenrolar dessa história será assunto de outras postagens aqui no blog, em breve.
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O trecho escrito por Lira Neto foi extraído do livro Padre Cícero: poder, fé e guerra no sertão (Companhia das Letras, 2009).
Leia outras postagens sobre a Guerra de 1914 (Sedição de Juazeiro):
- 20 de dezembro de 1913: tropa do Governo Estadual tenta invadir Juazeiro
- Eis os novos centenários: Guerra de 1914 e morte da Beata Maria de Araújo
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