Em
uma postagem de dezembro, que lançava neste blog a missão de lembrar o centenário da Guerra de 1914 (ou "Revolução de 1914", e que alguns também chamam de "Sedição de Juazeiro"), comentávamos sobre a necessidade de recontar e (re)interpretar as histórias daquele conflito armado, deflagrado no Ceará no final de 1913 e início de 1914.
Temos em mente a importância de se entender aquele contexto histórico e perceber que há muito mais de emaranhado político e disputa de interesses do que uma "simplificação histórica", que já tentou abreviar aquele conflito a uma "guerra entre Crato e Joaseiro (hoje Juazeiro do Norte)". É preciso verificar que por trás da contenda estavam interesses que envolviam não só políticos dos dois municípios, mas também o Governo do Estado e até mesmo a Presidência da República. E em meio a isso tudo, a grande influência de coronéis de diversas localidades — que poderiam, por exemplo, morar no Crato e defender o Padre Cícero, ou morar em terra juazeirense e ser adversário político do Patriarca.
E em meio a essas nuances, o papel do Padre Cícero naquela batalha bélica e política é um dos que até hoje rende discussão, é motivo de discórdia.
Para tentar esclarecer o assunto, ou adicionar novos elementos e visões históricas sobre essas questões, Daniel Walker reuniu no livro
Padre Cícero na berlinda diversos depoimentos colhidos em documentos e livros históricos, ajudando a iluminar (ou aumentar a discussão de) alguns dos fatos ocorridos entre 1913 e 1914.
Abaixo reproduzimos a seção "Que participação teve o Padre Cícero na Revolução de 1914?", com esses depoimentos. Confira abaixo:
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Livro Padre Cícero na berlinda, de Daniel Walker (edições IPESC/URCA, 2ª edição, 1995, p. 61-66):
Que participação teve o Padre Cícero na Revolução de 1914?
Padre Cícero: "Posso afirmar, sem nenhum peso de consciência, que não fiz revolução, nela não tomei parte, nem para ela concorri, nem tive nem tenho a menor parcela de responsabilidade, direta ou indiretamente, nos fatos ocorridos. Não tenho culpa de que, por um despeito mal-entendido e de ordem política, houvesse e ainda exista quem me queira tornar por ela responsável. Estou certo de que, quando se fizer a verdadeira luz sobre esses fatos, meu nome realçará limpo como sempre foi."
Otacílio Anselmo, militar e escritor: "O movimento armado foi organizado por Floro e liderado pelo Padre Cícero. Deflagrado o movimento, o Padre Cícero pretendeu estendê-lo a outros municípios. Neste intuito mandou Floro e Pedro Silvino a Missão Velha, à frente de numerosa comitiva armada, onde esperava receber a adesão de Domingos Furtado, José Inácio e Manoel Chicote."
Rodolpho Theophilo, escritor: "O Padre Cícero esperava o momento oportuno para insurgir-se contra o governo do Estado. Manhoso e precavido, ia contemporizando, sujeitando-se a certas exigências dos poderes públicos dentro dos seus domínios, à espera da ordem de ataque do Rio de Janeiro. Não precisava ser muito arguto para verificar que Padre Cícero agia de comum acordo com o Governo Federal. Caso a deposição de Franco Rabelo não pudesse ser feita em Fortaleza pelos marretas, começaria por um movimento sedicioso em Juazeiro, promovido pelo Padre Cícero Romão Batista , e viria sobre a capital do Estado."
Edmar Morel, jornalista e escritor: "O Padre Cícero arquitetou uma revolução para alijar o coronel Franco Rabelo do governo... Franco Rabelo foi deposto pelos cangaceiros do Padre Cícero e Floro Bartolomeu, com o dinheiro fácil do Banco do Brasil, mandado pelo Senador Pinheiro Machado, o dono do País."
Ralph Della Cava, historiador: "Contrariamente à maioria das interpretações tanto contemporâneas quanto atuais, parece certo que o Cel. Antônio Luís foi o arquiteto principal do plano no Cariri; Floro foi o executor-chefe e Padre Cícero, seu cúmplice atônito e indeciso. É hoje evidente que não poderia ter sido de outra forma. Antônio Luís, primo-irmão do ex-governador Accioly, chefe deposto do Crato, antigo deputado estadual e outro 'Grande Eleitor' de todo o Vale do Cariri, era quem mais tinha a lucrar com a 'revolução'. Além disso, tratava-se de um político experiente, enquanto Floro não conhecia uma única personalidade política no Ceará e jamais estivera em Fortaleza! Somente depois de ter ido ao Rio de Janeiro, em agosto de 1913, travou relações com os Accioly, com o senador Cavalcante e com o próprio Pinheiro Machado! Admite-se que Antônio Luís e Floro não foram os únicos conspiradores. Havia, ainda, o imprevisível João Brígido, redator-chefe do jornal 'O Unitário', a primeira pessoa a partir para o Rio de Janeiro em 1913 com o fim de conspirar contra o governo de Franco Rabelo."
Irineu Pinheiro, médico e escritor: "Em seu testamento declarou o Padre Cícero de modo textual: 'Não fiz revolução, nela não tomei parte, nem para ela concorri, nem tive, nem tenho a menor parcela de responsabilidade, direta ou indiretamente nos fatos ocorridos'. Mas o que se pode afirmar é que sem o apoio do Padre Cícero não teria sido possível ao Dr. Floro, chefe ostensivo da revolução, conduzir de Juazeiro um romeiro sequer para enfrentar as forças legalistas daquele tempo."
C. Livino de Carvalho, escritor: "Foi o Dr. Floro o inspirador e chefe absoluto da rebelião do Juazeiro, que, levada a bom termo, logrou derribar o governo estadual do coronel Franco Rabelo. Nessa empresa, de que recolheria honras e preitos, usou dos romeiros do Padre Cícero o qual lhe emprestava a força da influência e prestígio."
Azarias Sobreira, padre e escritor: "Padre Cícero em tempo algum pretendeu armar sua gente contra quem quer que fosse. Norma invariável de seu viver até os setenta anos, sua política era toda de paz e boa vizinhança. Foi a chegada de Floro em 1908, a sua gradativa ascendência sobre o guia espiritual daquele aglomerado humano, que a tudo imprimiu uma nova diretriz. Foi Floro quem, ao apagar das luzes de 1913, acendeu o facho da rebelião popular, que teve por epílogo a deposição do Governador do Estado Franco Rabelo. Diga-se, entretanto, de passagem, que se Franco Rabelo não houvesse sido inepto e desavisado, Juazeiro nunca teria pensado em pegar em armas para depô-lo. Porque é inegável que o militar que tinha então as rédeas do Governo Estadual, desde muito afastado no Sul do País, ignorava os anseios da alma cearense naquele agitado momento político. Certamente por isto, admitiu a seu conselho figuras inexpressivas e sem passado, sequiosas de reivindicações absurdas e ressumantes de malquerenças individuais. Dentre eles não faltava quem apontasse a destruição de Juazeiro como um fato digno de todos os louvores. Reduzir a cinzas a terra do Patriarca, eis o que se impunha. Afirmavam isto nas ruas de Fortaleza e seus partidários o repetiam pelo interior, criando, assim, no sertanejo conformista, paulatina disposição para uma reação armada. Insuflados por tais mentores, rapazes situacionistas, porventura sob o incentivo de libações alcoólicas, faziam ruidosas serenatas, indo, às vezes, proferir expressões equívocas, em noites de luar, bem perto da residência do Padre Cícero. Enquanto isto, os políticos decaídos, sabedores de tudo e saudosos da administração Acioly, recém-apeada do poder, instavam com Floro Bartolomeu no sentido de se desvencilhar de Franco Rabelo, prometendo-lhe irrestrito apoio do Governo Federal. Choviam argumentos sobre argumentos. Sucediam-se emissários do partido aciolino desarvorado suplicando ao Padre Cícero que salvasse o Ceará daquele a quem chamavam de déspota da demagogia. E já que ninguém dispunha de elementos e prestígio para empunhar o estandarte da inconfidência, que ele, Padre Cícero, não hesitasse em assumir tal decisão, ainda com sacrifício de seu passado de anjo da paz! Cedeu, enfim, o Patriarca, mas sem entusiasmo. Só o fez depois que lhe asseveraram, insistentemente, que não se faria derramar sangue: bastaria reunir em Juazeiro os deputados dissidentes, armar algumas centenas de homens e declarar deposto o Governo do Ceará."
Amália Xavier de Oliveira, educadora e escritora: "Todo brasileiro, todo cearense, todo juazeirense, precisa saber que aquela revolução, que teve por palco Juazeiro do Padre Cícero, pelo fato de haver rebentado aqui no dia 9 de dezembro de 1913, foi um movimento de ordem política, orientado e apoiado, material e moralmente pelos altos poderes da República, e que membros da alta cúpula política da oposição deram ao Dr. Floro Bartolomeu, a incumbência de chefiá-la. Infelizmente ainda hoje há quem, ou por má fé, ou por não conhecer as causas da mesma revolução, dê a responsabilidade de tudo ao Padre Cícero."
Floro Bartolomeu da Costa, médico, jornalista e político: "Será possível que não se saiba ainda hoje que fui eu o chefe da revolução do Juazeiro e o único responsável por ela? Já está por demais repisado este caso. Esse movimento que, por motivos de ordem especial, fiz irromper no Juazeiro, não foi nem podia ter sido sustentado somente por cangaceiros e por fervorosos adeptos daquele sacerdote, porquanto, com a causa que o determinou, estava grande parte da população cearense, constituída dos religionários do grande partido em oposição ao governo."
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Outras postagens sobre a Revolução/Guerra de 1914:
- 20 de dezembro de 1913: tropa do Governo Estadual tenta invadir Juazeiro
- 1º de janeiro de 1914: tenente do Exército visita Juazeiro e Pe. Cícero
- 22 de janeiro de 1914: a tropa do major Ladislau foge para Barbalha
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