quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Uma das tantas crônicas de Nelson Rodrigues sobre futebol(?)

Embalado pra viagem # 74

Conveniência de ser covarde

Há tempos, fui à rua Bariri ver um jogo do Fluminense. E confesso: — sempre considerei Olaria tão longíqua, remota, utópica como Constantinopla, Istambul ou Vigário Geral. Já na avenida Brasil, comecei a sentir uma nostalgia e um exílio só equiparáveis aos de Gonçalves Dias., de Casimiro de Abreu. Conclusão: — recrudesceu em mim o ressentimento contra qualquer espécie de viagem. Mas enfim cheguei e assisti à partida. Nos primeiros trinta minutos, houve tudo, rigorosamente tudo, menos futebol. Uma vergonha de jogo, uma pelada alvar, que não valia os cinco cruzeiros do lotação. E, de súbito, ocorre o episódio inesperado, o incidente mágico, que veio conferir ao match de quinta classe uma dimensão nova e eletrizante.

Eis o fato: — um jogador qualquer enfiou o pé na cara do adversário. Que fez o juiz? Arremessa-se, precipita-se com um élan de Robin Hood e vem dizer as últimas ao culpado. Então, este não conversa: — esbofeteia o árbitro. Ora, um tapa não é apenas um tapa: — é, na verdade, o mais transcendente, o mais importante de todos os atos humanos. Mais importante que o suicídio, que o homicídio, que tudo mais. A partir do momento em que alguém dá ou apanha na cara, inclui, implica e arrasta os outros à mesma humilhação. Todos nós ficamos atrelados ao tapa. Acresce o seguinte: — o som! E, de fato, de todos os sons terrenos, o único que não admite dúvidas, equívocos ou sofismas, é o da bofetada. Sim, amigos: — uma bofetada silenciosa, uma bofetada muda, não ofenderia ninguém e pelo contrário: — vítima e agressor cairiam um nos braços do outro, na mais profunda e inefável cordialidade. É o estalo medonho que a valoriza, que a dramatiza, que a torna irresgatável. Pois bem: — na bofetada de Olaria não faltou o detalhe auditivo. Mas o episódio não esgotaria, ainda, o seu horror. Restava o desenlace: — a fuga do homem. Pois o juiz esbofeteado não teve meias medidas: — deu no pé. Convenhamos: — é empolgante um pânico assim taxativo e triunfal, sem nenhum disfarcem nenhum recato. Digo “empolgante” e acrescente: — raríssimo ou, mesmo, inédito. Via de regra só o heroísmo é afirmativo, é descarado. O herói tem sempre uma desfaçatez única: — apresenta-se como se fosse a própria estátua equestre. Mas a covardia, não. A covardia acusa uma vergonha convulsiva. Tenho um amigo que faz o seguinte: — chega em casa, tranca-se na alcova, tapa o buraco da fechadura e só então, na mais rigorosa intimidade — apanha da mulher. Mas cá fora, à luz do dia, ele é um Tartarin, um Flash Gordon, capaz de varrer choques de polícias especiais.

Pois bem. Ao contrário dos outros covardes, que escondem, renegam, que desfiguram a própria covardia — o juiz correu como um cavalinho de carrossel. Note-se: há, hoje, toda uma monstruosa técnica de divulgação, que torna inexequível qualquer espécie de sigilo. E, logo, a imprensa e o rádio envolveram o árbitro. Essa covardia fotografada, irradiada, televisionada, projetou-se irresistivelmente. E quando, em seguida, a polícia veio dar cobertura ao árbitro, este ainda rilhava os dentes, ainda babava materialmente de terror. Acabado o match a multidão veio passando, com algo de fluvial no seu lerdo escoamento. Mas todos nós, que só conseguimos ser covardes às escondidas, tínhamos inveja, despeito e irritação dessa pusilanimidade que se desfraldara como um cínico estandarte.

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Nelson Rodrigues, em crônica originalmente publicada no jornal Manchete Esportiva, no dia 17 de dezembro de 1955. Texto depois reproduzido no livro O Berro Impresso nas Manchetes: Crônicas Completas da Manchete Esportiva (Agir, 2007) e no fascículo especial da Bravo!: Literatura & Futebol (Abril, 2010).

1ª caricatura de Mario Alberto;
2ª caricatura de William Medeiros.

Em nossa homenagem pelo centenário do nascimento de Nelson Rodrigues, neste dia 23 de agosto de 2012.
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