terça-feira, 1 de março de 2016

Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Cabismeditado



por Harlon Homem de Lacerda

“Eu tinha de entender-lhe as mínimas entonações, seguir seus propósitos e silêncios”. Essa frase poderia ser minha ou de qualquer outro crítico que se dispusesse a ler a ficção de João Guimarães Rosa, o fasmisgerado... faz-me-gerado... falmisgerado... familhas-gerado escritor de quem tratamos já há um tempo e de quem falamos há tempos. Um homem de história tão afamada, mas que tem mantida, a peso de família, uma névoa espessa sobre suas palavras mais íntimas. Tem um livro, intitulado Joãozito, escrito pelo tio, que tinha quase a mesma idade de Guimarães e por isso quase um irmão deste, que traz uma carta fazendo um panorama do que Guimarães considerava bom ou ruim na literatura brasileira do seu período. Eis a névoa! O trecho da carta no qual Guimarães Rosa fala da péssima literatura foi censurado! Cortado pelo tio que queria poupar seu sobrinho. Poupar?! Quanta mediocridade! Quanto desrespeito com os leitores de João, sem zito.

A família de Guimarães Rosa, mais notadamente sua filha Vilma, vive da sombra do pai deixando sua própria sombra ocultar boa parte de um material que seria valiosíssimo para quem estuda ou simplesmente gosta do maior escritor brasileiro do século XX. Nem falamos ainda da péssima decisão tomada não sei por quem dessa família de doar os documentos e a biblioteca de João Guimarães Rosa para a USP. A “grande universidade” mantém escondido a setenta vezes sete chaves material que só os eleitos que se dignarem (e puderem) ir a São Paulo podem ter acesso. Um conteúdo público! Um conteúdo que, se a USP fosse um Instituição séria e comprometida com algo além de suas paredes, digitalizaria e disponibilizaria para todo o mundo. Mas, não. “O medo O”. O medo mia esse povo da USP, que continua a desejar possuir Guimarães Rosa como a uma relíquia para iniciados. Minhas mais sinceras ojerizas são dirigidas aos responsáveis por esse crime contra a cultura brasileira.

É assim, “cabismeditado” que eu começo falando desse conto. Na verdade, nem falando do conto “Famigerado” de Primeiras Estórias estou falando eu ainda, estou mesmo é brabo como toda essa incapacidade de alguns intelectuais brasileiros e uspianos, essa mediocridade de parte da família de Guimarães em esconder do povo material tão rico. Material tão importante. Vontade mesmo é de ser urucuiano agora e entrar porta adentro perguntando aos doutores uma opinião deles explicada, tim-tim-por-pingo-no-i por que tamanha falta de vergonha na cara deles.

E o conto? Ah, a estória? É linda. Cada tom, cada fraseado seja do doutor, seja de Damázio, o famigerado, construída milimétrica. O peso dos propósitos e silêncios quem entrevemos no conto é de uma possibilidade de leitura grandiloquente no limite. Cada gesto, parecendo uma justa, um duelo. A tensão do médico, a tensão do jagunço, a tensão dos três que vieram só pra ouvir a explicação do que fosse o significado da palavra “famigerado”. Essa mínimas entonações, lugar de quem precisa dos detalhes pra compreender e fazer-se compreender, pra fazer arte literária: os detalhes. O perfeccionismo latente. João Guimarães Rosa certamente é maior que a familha-gerado de onde ele veio, é maior que os uspianos, é maior que a USP, é maior que a Academia.
____


Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

Outros textos da coluna “Perspectivas do alheio” no blog O Berro:
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Primeiras Estórias’ – Circuntristeza
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Grande Sertão: veredas’ – Duvida?
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Tu leu Buriti?
- Perspectivas do Alheio – 01 ano
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Jiní
- Dossiê João Guimarães Rosa – Cara-de-bronze: ‘Duas coisas’
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – Conta quem conta
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – O vaqueiro minino
- Dossiê João Guimarães Rosa: ‘Corpo de Baile’ – A criança paradigma
- Dossiê João Guimarães Rosa – Seguindo a travessia

.

Nenhum comentário:

Postar um comentário