terça-feira, 14 de julho de 2015
Notas sobre a amizade em ‘Mary & Max: Uma Amizade Diferente’
por Cícero Émerson do Nascimento Cardoso
Alguém me disse, certa vez, que amizade não passa de uma utilidade prática – o que eu discordo. Eu prefiro apoiar-me, talvez romantizando o termo – o que é um problema a ser dirimido –, na assertiva de Clarice Lispector (1999, p. 78)*: “amizade é matéria de salvação.”
A propósito, uma das mais belas discussões sobre a amizade – amizade que se adéqua à linha do que Clarice Lispector compreende como matéria de salvação – podemos encontrar na obra cinematográfica Mary & Max: Uma Amizade Diferente, do australiano Adam Elliot.
Mary Dayse Dinkle, filha única de uma família visivelmente disfuncional, aos oito anos decidiu escrever para alguém da América apresentando, para seu interlocutor, alguns questionamentos que sua mente de criança ainda não conseguia compreender. Sua carta foi, por acaso, direcionada a um homem americano chamado Max Jerry Horowitz que, solitário, comedor compulsivo, portador da Síndrome de Asperger, viu seu cotidiano, por vezes sombrio, ser alterado completamente.
A partir desta primeira carta, que Max responde após intenso conflito, uma amizade nasce entre os dois e os acompanha, salvificamente, por anos, resistindo à distância, às impossibilidades de encontro, às angústias que cada um, em seu universo particular, sofria ante uma existência nem sempre tão amigável.
O tom sombrio que perpassa a vida de Max é indicado pela fotografia em preto e branco; a fotografia que compõe as cenas em que Mary aparece tem um tom amarronzado com poucas variações de cores.
Mundos, idades e experiências existenciais tão diferentes poderiam representar uma impossibilidade para o estabelecimento de uma amizade, no entanto a solidão, o vazio existencial, a ausência de afeto os reuniu. O mundo de Max, antes em preto e branco, passa a sofrer alterações também nas cores, através dos objetos que Mary envia junto das cartas.
Inúmeros temas são abordados nesta obra e podemos afirmar que todos eles convergem para o estreitamento da relação que se desenvolve entre Mary e Max. Para ilustrar, consideremos o fato de que a solidão da menina surge em decorrência da falta de atenção dos pais – seu avô comete suicídio no início do filme, seu pai trabalha numa fábrica de chá e, quando está em casa, procura ficar sozinho num quarto dos fundos, empalhando aves mortas, e sua mãe, além de cleptomaníaca, é alcoólatra e viciada em antidepressivos. Max, por sua vez, de família judia, não conheceu o pai e sofreu pela morte da mãe que cometera suicídio quando este ainda era um garoto.
Na escola, Mary era maltratada por ser gorda e por ter uma mancha marrom no rosto; Max sofria algo parecido: era atormentado em seu bairro por ser, além de gordo, portador da Síndrome de Asperger que o tornava aparentemente estranho em relação às crianças de sua faixa etária.
Por esta identificação mútua, Mary encontra em Max a atenção que não encontrava em casa. Max, por sua vez, sentia-se reconfortado por ter encontrado finalmente uma amiga – já que fazer amigos (além de ter um estoque de chocolate para a vida inteira e a coleção inteira dos “noblets”) era o seu principal objetivo.
Um impasse ocorre entre eles, e simula um rompimento da amizade, quando Mary decide realizar um trabalho acadêmico com a intenção de conhecer a Síndrome de Asperger e, posteriormente, curar seu amigo. Ele, que não se sente com necessidade de cura, rompe a amizade que construíram causando nela uma sensação de culpa que a encoraja a destruir sua carreira acadêmica.
Embora casada, Mary sentia-se cada vez mais solitária, infeliz e dependente de antidepressivos – tal qual sua mãe. A angústia se acentua quando seu marido escreve uma carta dizendo-lhe que a abandonaria para viver com outro homem. Nesta ocasião, grávida, Mary decide suicidar-se e, no auge de sua dor existencial, ocorre sua redenção: Max envia-lhe uma nova correspondência e ela reencontra o ânimo para viver.
Comovente, intensa, dotada de uma ironia que margeia o macabro do humor, esta obra cinematográfica, excedente em singeleza, dá-nos uma dimensão profícua sobre o que a amizade deve representar para um indivíduo: conforto, auxílio, cumplicidade, compreensão e, sobretudo, aceitação.
Por aceitar Max em sua diferença, Mary reencontra a si mesma e ressignifica sua vida: estar com o outro não significa, necessariamente, tentar curá-lo. Ela passa a compreender, portanto, o que nós muitas vezes não compreendemos com facilidade: ninguém se cura de ser um ser humano – eis a mais indevassável das verdades.
E como escreve Rachel de Queiroz (1989, p. 93)** numa crônica sobre o tema: “respeite os seus amigos. Isso é essencial. Não procure influir neles, governá-los ou corrigi-los. Aceite-os como são. O lindo da amizade é a gente saber que é querida a despeito de todos os nossos defeitos.” E tenho dito!
Referências:
* LISPECTOR, Clarice. «Uma amizade sincera». In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999. p. 78.
** QUEIROZ, Rachel de. «Amigos». In: Mapinguari: crônicas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1989. p. 93.
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Cícero Émerson do Nascimento Cardoso: Professor de Língua Portuguesa da Rede Pública de Ensino do Estado do Ceará; graduado em Letras pela Universidade Regional do Cariri; especialista em Língua Portuguesa, Literaturas Brasileira e Africanas de Língua Portuguesa; mestrando em Literatura Comparada pela Universidade Federal da Paraíba; membro do Núcleo de Pesquisa em Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Regional do Cariri – NETLLI do Grupo de Estudos e Pesquisa em Literatura e Sociedade Contemporânea - GELISC. Autor do livro de contos Breve estudo sobre corações endurecidos (2011) e Romanceiro do Norte Juazeiro (2014) e dos folhetos A Beata Luzia vai à guerra e A artesã do chapéu (ou pequena biografia de Maria Raquel). Teve poema selecionado para o evento literário realizado pelo CCBNB “Abril para Leitura” em 2012, 2013, 2014 e 2015. Tem texto publicado pela Revista de Literatura e Arte Boca Escancarada, e desenvolve trabalhos acadêmicos vinculados à Literatura e Filosofia.
Texto originalmente publicado na SÉTIMA: Revista de Cinema (edição 20, de novembro de 2014), que é distribuída gratuitamente na Região do Cariri cearense. A Revista Sétima é uma publicação do Grupo de Estudos Sétima de Cinema, que se reúne semanalmente no SESC de Juazeiro do Norte-CE.
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