terça-feira, 3 de março de 2015

Por que eu não li Dom Quixote?



por Harlon Homem de Lacerda

Parece coisa de feitiçaria o fato de eu nunca ter lido um dos mais cultuados, falados e comentados romances da literatura ocidental. Não há um motivo especial, um protesto e muito menos uma manifestação política de minha parte pra nunca ter lido El ingenioso hidalgo don Quijote de La Mancha, de Miguel de Cervantes Saavedra. Até comprei o livro, em dois volumes, capa dura, barato, mas muito bonito. Abri, cheirei o livro, folheei e nada!

Por que eu não li Dom Quixote? Não sei! Parei três ou quatro vezes, sentado numa poltrona, numa praça, deitado na cama apenas para ler o Dom Quixote. Li? Qual o quê?! Li a Nota dos Tradutores, a taxação, o testemunho das erratas, a licença do rei, a mensagem ao Duque de Béjar, o prólogo (iluminado, diga-se de passagem) escrito por Cervantes e os poemas, cada um mais engraçado do que o outro e o que prenunciava a entrada no melhor romance de todos os tempos. Parei aí, entretanto!

Quão frustrante é não poder falar da experiência de ler o romance dos romances? O livro que demonstrou a solidão humana, o fim da interferência de Deus na terra, que redefiniu os caminhos da vontade e tornou subjetiva a escolha do herói diante do mundo? A frustração não para aqui! De quem é a culpa? Que tipo de conspiração existe para que eu não trave diálogo com o representante máximo do Siglo de Oro espanhol?

Não consigo entender, por mais esforço que faça, e a culpa é minha. Devia me trancar em qualquer lugar e ler até acabar a última página, como o fiz com Grande sertão: veredas de Rosa. Este outro romance era minha cruz há alguns anos. Queria lê-lo também e não passava das primeiras cinquenta páginas. Nonada! Nem chegava a conhecer o sertão dentro da gente e atirava o livro de lado. Tranquei-me enfim um dia e no dia seguinte, depois de vinte quatro horas de um êxtase agônico lendo cada relato de Riobaldo, já estava perto de concluir a leitura daquele que achei o melhor romance de todos os tempos. Li o Grande sertão! O romance dos romances pra mim àquela altura. O sertão de Guimarães Rosa construído palmo a palmo com o peso de todas as línguas da humanidade é o universo literário mais completo do ocidente.

E mesmo que eu insista, desenhando para vocês, meus amigos e amigas, o mundo rosiano com todas as cores que conheço, não posso, de forma alguma, dar-lhes segurança plena no que digo, unicamente pelo motivo de eu nunca ter lido o Engenhoso Fidalgo Dom Quixote da Mancha de Miguel de Cervantes. Devo fazer o mesmo procedimento então! Vou me trancar e ler o dito livro. É a única forma de salvar dentro de mim o pouco de dignidade que me resta pra poder atestar com os meus próprios olhos e tino que Dom Quixote é o melhor romance de todos e Grande sertão: veredas não passa de um irmão mais novo.

E por mais que eu tente, por mais voltas que eu dê a meu passado, por mais explicações que eu enumere, por mais que eu goste e queira que Guimarães Rosa esteja no topo, eu não sei, não consigo explicar a mim mesmo e muito menos a vocês o porquê de eu não ter lido a história de Dom Quixote, o fidalgo que, de tanto ler novelas de cavalaria, decidiu que teria sua própria aventura: desbravar a eternidade! A escolha de Aquiles, ao trocar uma velhice tranquila pela glória eterna com a morte prematura na batalha, não é mais honrosa nem menos que a clarividência do cavaleiro da triste figura. Resta dizer a vocês, por fim, que não cometam o mesmo erro que eu: leiam o Dom Quixote (e leiam também Grande sertão: veredas).

P.S.: Não deixem de ler também a Ilíada de Homero.
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Harlon Homem de Lacerda é Mestre em Letras pela UFPB e Professor de Literatura Brasileira da Universidade Estadual do Piauí (UESPI - Oeiras). E-mail: harlon.lacerda@gmail.com.

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